Andreia Santana 16/08/2016
Medo ancestral e atávico
A cidade inteira dorme reúne 13 histórias que apresentam um pouco de tudo que há na literatura de Ray Bradbury, o prolífico autor de Fahrenheit 451, que escreveu diariamente até sua morte, em 2012, aos 91 anos. Desde ficção científica até o terror psicológico, passando por boas doses de fantasia, futuros distópicos, mundos paralelos e realidades alternativas, a edição, com menos de 200 páginas, funciona também como eficiente introdução ao universo bradburyano.
Os contos de A cidade inteira dorme misturam a atmosfera de séries de suspense e terror como Além da Imaginação, ou filmes na melhor tradição de Sexta Feira 13 e A Hora do Pesadelo, com o cenário empoeirado e modorrento das cidadezinhas do interior dos Estados Unidos.
Ray Bradbury parte de situações cotidianas, da vida ordinária, para criar histórias assustadoras e inquietantes. Um dos contos transforma a ida de três amigas ao cinema em um thriller sobre serial killers e perseguições apavorantes em meio a escuridão, mexendo com o medo atávico que os seres humanos, desde os primórdios, possuem do breu da noite e das paisagens ermas.
Os desfechos em aberto para a maioria das histórias contribui para fazer o leitor mais impressionável checar embaixo da cama e olhar por cima do ombro a cada nova página. E ainda assim, não desistimos até chegar ao final do último conto, com aquela mistura de curiosidade e terror, típico dos oito anos, quando assistíamos filmes assombrosos fingindo uma coragem que cobraria seu preço justamente na hora de dormir. E haja criar muralhas de lençol impossíveis de derrubar por qualquer criatura sombria, mesmo quando o calor dava a sufocante sensação de que estávamos nos enterrando vivos no próprio colchão.
O medo provocado pelas histórias de A cidade inteira dorme é ancestral e orgânico, beirando o pânico. Contos como O homem ilustrado, com elementos sobrenaturais como tatuagens que ganham vida e bruxas sinistras, merecem destaque pelos inquietantes componentes psicológicos. Uma esposa frustrada, um marido acomodado, palavras cruéis ditas na hora errada e desfechos trágicos, autofágicos, fazem dessa uma das histórias mais famosas de Bradbury, já publicada em outras coletâneas do autor.
Igualmente assustador é A hora zero. Esse conto, sobre alienígenas e pais relapsos, é claustrofóbico e ao mesmo tempo, ótima metáfora sobre as consequências do desleixo com a educação das crianças. Pode ainda ser lido como uma ácida crítica ao american way of life. Bradbury parte da premissa de que certos tipos de mães e pais, ocupados demais com o carro novo, a hipoteca da casa ou os aparatos tecnológicos recém comprados, não dão muita atenção ao que os filhos dizem ou fazem, tornando-os perigos em potencial.
Mas, nem só de pavor é feita essa coletânea. Uma das histórias mais ternas do livro é a divertida A autêntica múmia egípcia feita em casa, em que um garoto entediado e seu vizinho aposentado viram a rotina de uma cidadezinha de cabeça para baixo por conta de uma alarmante 'descoberta arqueológica'. Das 13 histórias, essa é a mais cheia de reminiscências às infâncias felizes, travessas e cheias de sótãos e porões (no caso das crianças brasileiras, de quintais e quartinhos dos fundos de guardar quinquilharias) abarrotados de tesouros a descobrir.
No final da leitura, mesmo das histórias aparentemente inocentes, fica a sensação de que a qualquer momento vai soar o alarme que avisa do perigo iminente, seja ele real ou imaginário.
Recomendo a leitura desta coletânea como prévia para a nova série da Netflix: Stranger Things e Ray Bradbury foram feitos um para o outro e certamente, os criadores da série mergulharam de cabeça nas histórias do escritor, para nosso mais puro deleite!
site: https://mardehistorias.wordpress.com/