Larissa | @paragrafocult 14/10/2019
"A fantasia era uma realidade esperando ser ativada"
Conheci Joe Hill por acaso. Há alguns anos encontrei perdido pela internet o PDF de um livro chamado "A Estrada da Noite" e a premissa parecia bem bacana. Era o segundo livro lançado pelo autor - o primeiro fora uma coletânea de contos chamado "Fantasmas do Século XX". Como eu estava em uma época onde basicamente lia apenas romances, peguei esse para ler algo diferente, afinal era bem curto e a leitura fora bem agradável porém não havia marcado a minha vida o suficiente para que eu procurasse mais obras suas e portanto, esquecera o autor nos confins da minha memória.Anos depois me deparei com seu nome novamente na época de lançamento do filme Amaldiçoado, que é baseado em um outro livro seu que foi lançado aqui como O Pacto, aquele em que o Daniel Radcliffe (sim, o Harry Potter) vai ganhando chifres enormes e se tornando um demônio. Pois bem, resolvi pesquisar sobre o autor e a minha surpresa quando descobri que o mesmo era filho do Stephen King (esse mesmo, o que vivo falando aqui para vocês) foi enorme.
É dezembro de 2008 e uma enfermeira estava passando pela unidade de cuidados prolongados de um hospital prisional - na ala mais conhecida como Recanto dos Vegetais, pois era onde estavam os pacientes que já não respondiam a estímulo nenhum. Era hora de cuidar de Charles Manx, um homem que estava ali há anos e que parecia tão velho como uma múmia. Ele já parecia morto. Não respondia a nada e seu coração batia lentamente, sem contar a sua aparência. Era extremamente velho e ninguém sabia ao certo a sua idade. Quando um dia, Charles parece acordar do coma segurando seu braço e dizendo que vira seu filho, Josiah no Cemitério do Talvez, ela entra em pânico, afinal, como ele poderia estar acordado e saber o nome de seu filho? Ninguém acredita em sua história, claro. Todos acham que o ocorrido era apenas fruto da sua imaginação cansada de tanto trabalhar mas ela sabia que não era o caso. Paralelamente a isso, nós conhecemos Victoria McQueen, uma garotinha de 8 anos que adora desenhar e que ganha de presente do pai, de quem é bem próxima, uma Raleigh, a melhor bicicleta do mundo do seu ponto de vista. Os pais de Vic não tem um relacionamento muito saudável e por conta disso a menina começa a usar da bicicleta para "fugir". Enquanto faz isso durante uma das brigas de seus pais por conta de uma pulseira perdida, ela acaba encontrando um caminho até a Ponte do Atalho. Ela descobre que a Ponte é capaz de levá-la a qualquer lugar do mundo, basta apenas que ela imagine e o que estiver procurando estará no final do caminho.
Vic então passa a usar várias vezes a ponte para encontrar objetos perdidos a fim de terminar as muitas discussões dos seus pais: uma pulseira, uma foto, um gato perdido... Porém após encontrar as coisas, a garota sempre fica em dúvida se não era a sua própria mente lhe pregando uma peça.
Porém com o tempo, Vic descobre que não é a única pessoa que possui um dom especial assim. Charles Manx, um homem de aparência estranha tem um Rolls-Royce - ou Espectro, como é chamado - que pode levar as pessoas para uma terra mágica, a Terra do Natal, onde todas as crianças podem ser felizes para sempre.Eu adorei a forma como Manx e a Terra fruto de sua mente são descritos. A Terra do Natal é um lugar mágico, lúdico e incrível a primeira vista porém aterrorizante quando se olha com mais cuidado. Não demora muito para que fique bem claro para nós o que ele, Charles Manx é: um vampiro. Mas não daqueles que vemos nos filmes como Drácula. Ele não teme o sol e bebe o sangue das pessoas. Na verdade, ele se alimenta de outra coisa, a energia vital das crianças.
O personagem é muito bem construído. É um homem que muda frequentemente de aparência conforme o tempo que passa longe de seu veículo e que tem uma ligação bem mais forte com o seu carro do que Vic com sua bicicleta. Ele e o seu Rolls-Royce são um só. Charles é um cara mau e de mente completamente retrógrada, com pensamentos muito arcaicos e machistas porém acredita fielmente que está fazendo algo bom ao tirar as crianças de famílias que ele considera desfuncionais e as levando para a Terra do Natal. O problema é que no trajeto, enquanto estão dentro do carro, elas perdem não apenas sua energia vital como também toda a tristeza de seu corpo. Ou seja, as crianças param de ter aquela noção do que é certo e errado e viram criaturinhas que veem graça até mesmo em acontecimentos cruéis. Sem contar na aparência das mesmas, que muda as deixando com feições horríveis e doentias. Quando Vic cresce, ela se torna uma adolescente extremamente problemática. Seu pai - alguém que ela amava muito e que considerava sua âncora, a abandonou. Seu relacionamento com a mãe que nunca fora dos melhores estava pior ainda e ela estava no auge de sua revolta juvenil. Então, em um momento de surto, ela sai com sua bicicleta que agora está pequena para seu corpo de adolescente, em busca de problema.
Essa parte em que Vic era adolescente me irritou bastante. Sei que era por causa do comportamento rebelde dela, que odiava tudo e todos, porém foi difícil de gostar da personagem aqui e foi o único momento em que me vi enrolando na leitura. Eu acho um saco quando os personagens de livros passam por essa fase porque as descrições são sempre irritantes e os mesmos na maioria das vezes odeiam tudo que os rodeia.
É nesse momento que o caminho de Vic se cruza com o de Charles, que não vai mais se esquecer dela.A narrativa do livro é muito boa. Confesso que li esperando uma narrativa mais parada nos estilos de Stephen King porém o estilo de Joe Hill se difere muito do pai aqui. O autor conseguiu misturar elementos de fantasia - com a Terra do Natal e as viagens através da Ponte do Atalho - com o terror, já que as crianças de Charles eram assustadoras.
Por incrível que pareça, por mais que seja o vilão da história, Charles não foi o personagem que mais odiei na obra. Ele era cruel e doentio porém ao mesmo tempo tinha uma estranha inocência em si. Uma mente deturpada. Ele realmente amava as crianças da Terra do Natal. Realmente acreditava que estava lhes dando um destino mais feliz. Porém quem realmente me deu nojo foi o seu ajudante. Enquanto Charlie ficava com as crianças, seus pais ou adultos responsáveis por elas ficavam por conta de Bing, que conseguia ser ainda mais doentio, não tendo limite nos atos terríveis que fazia com eles. Toda a atmosfera envolvendo a sombria Terra do Natal é assustadoramente incrível. E os personagens foram tão bem trabalhados que dá orgulho de ler. Vic, devido ao trauma que teve quando conseguiu escapar de Charles, acabou virando uma adulta alcoólatra e com problemas psicológicos que em vários momentos não sabe se pode confiar na própria mente. Seu pai que sempre fora doce com ela porém que lhe abandonou e suas tentativas de retomar o contato com a filha. Até mesmo Lou, meu personagem preferido do livro inteiro. Ele foi a âncora de Vic quando ela não tinha mais ninguém, sempre acreditando e apoiando a garota até mesmo quando ela não acreditava em si mesma. Por vários momentos eu quis entrar no livro e abraçá-lo. Gostei também que ele, o amor de Vic, era completamente fora do padrão: um cara obeso, tatuado e fã de quadrinhos porém que esbanjava amor por ela. Um amor que era retribuído pela mesma, que sempre falava e pensava nele com imenso carinho mesmo achando que não o merecia. Também gostei muito dos dois terem mantido um relacionamento agradável mesmo após se separarem.
O livro tem muitas referências e elementos contemporâneos enquanto ao mesmo tempo contém muito do terror clássico. Porém não chega a ser um livro assustador a ponto de te deixar morrendo de medo caso não tenha costume com o gênero. É uma fantasia com temas mais sérios e pesados e um toque de terror para dar aquele charme a mais. O final do livro é bem satisfatório, não deixou pontas soltas e admito que fiquei querendo mais quando finalmente terminei a leitura. Ficou bem óbvio o motivo do livro ter sido muito elogiado. Uma bela obra.
Quanto ao nome do mesmo ser Nosferatu, é uma referência a placa do carro de Charles Manx. A placa do Rolls Royce é: NOS4A2, que se você ler em inglês tem a sonoridade parecida com Nosferatu, uma piada do Charles consigo mesmo. O livro em inglês tem esse título mas provavelmente traduziram para o melhor entendimento.
Ah, também lançaram uma série esse ano com o mesmo nome do livro da AMC com o Zachary Quinto no papel de Charles. Eu, como sempre, ainda não assisti mas li que as críticas foram mistas.
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