Victor Dantas 21/11/2020
Brasil: uma sociedade de Clara's #33
“Clara dos Anjos” (1948), foi o meu primeiro contato com a obra do Lima Barreto (1881-1922).
Publicado postumamente, o livro conta a história da Família Anjos, que vivem no subúrbio do Rio de Janeiro durante os anos 1920.
Com tempo e espaço definidos, Lima Barreto escreve sobre a sociedade da época, as relações de poder, classe, gênero e principalmente, as relações raciais, que moldou a história do nosso país e que permanece até hoje sendo uma questão de intenso debate e conflitos.
A protagonista que dá nome ao romance, Clara, tem 17 anos e é filha do casal Engrácia e Joaquim dos Anjos. Diante da sua condição social, gênero e sua cor, mulata, os pais de Clara sempre foram protetores com a filha perante as desgraças do mundo afora.
No entanto, tal criação contribui para que Clara com sua inocência e inexperiência, enxergasse sempre o lado bom de tudo e de todos.
E assim sendo, sua inocência perante o mundo revelará grandes consequências.
Além da família Anjos, temos ainda outros personagens secundários que são presentes na trama: o padrinho Marramaque, o dentista Menezes, o poeta Leonardo Flores, a vizinha Dona Margarida, e o principal, Cassi Jones, o violeiro tirado a nobre, tendo a fama de galanteador, mentiroso e destruidor de lares.
O conflito principal se dá entre Clara dos Anjos e Cassi Jones, quando se conhecem no aniversário de 18 anos de Clara, e ela logo cai de admiração e paixão pelo violeiro Cassi, enquanto este vê Clara como mais uma de suas vítimas de suas canções e seu romantismo fraudulento, a sua próxima conquista.
A partir daí, os acontecimentos ganham forma, e nós acompanhamos a relação dos dois personagem, as problemáticas e consequências que irão decorrer disso e o desfecho desse "Amor Proibido".
Em suma, os debates que a obra levanta são sobre:
• GÊNERO, RAÇA, CLASSE E PATRIACARDO
O nome do romance já deixa claro que vamos ter não só um protagonista feminino, como muitas mulheres presentes na história. E é esse para mim o aspecto mais importante da obra, pois o Lima Barreto nos coloca diante uma sociedade em que as mulheres não só eram inferiorizadas, como classificadas de acordo com sua raça e classe (muita coisa não mudou aliás) diante da sociedade patriarcal brasileira.
Cassi Jones é a personificação desse patriarcado que desfruta de todos os privilégios possíveis, por sua condição de homem, branco, classe média. Vemos inúmeras passagens onde esses privilégios são manifestados, principalmente no que diz respeito as mulheres, quais o personagem manipula para se satisfazer sexualmente, e as consequências dos seus atos (gravidez, fim de casamento etc.) são praticamente justificadas.
O tema racial é muito presente na obra. Clara é mulata, sendo assim, nos deparamos com situações em que a jovem é admirada por seus iguais e sua família, e situações em que é inferiorizada e ridicularizada, principalmente pela mãe do Cassi, que se considera nobre, por sua cor e classe.
Tais questões de classe, raça e gênero aparece também no desenvolvimento dos personagens secundários. Dessa forma, o romance assume uma tridimensionalidade, onde o Lima Barreto cede o momento de cada personagem permitindo que nós leitores conheça a vida e os anseios de cada um.
Outro aspecto interessante é que a prosa foi construída contendo alguns fatos autobiográficos da vida do autor, como por exemplo, sua experiência diante do alcoolismo, e suas internações em hospitais psiquiátricos decorrente de crises emocionais e do próprio alcoolismo.
Outrossim, a escrita do Lima Barreto não é tão rebuscada quanto eu esperava, existe sim algumas palavras que estão fora de uso, mas a edição que eu li (Penguin) contém inúmeras notas que auxiliam na compreensão de tais termos, bem como na contextualização do tempo, espaço em qual a obra foi escrita.
Por fim, apesar de não ter sido um livro que me tocou emocionalmente a ponto de favoritar, foi uma experiência muito boa. Pude conhecer mais um clássico brasileiro, bem como a obra de um autor que em vida foi muito criticado, mas, que mesmo assim já dispunha de uma excelência artística que poucos escritores conseguiram alcançar, sendo considerado um dos autores mais visionários da literatura nacional.
E não é para pouco, afinal, encontrei em “Clara dos Anjos” questões que ainda permanecem na sociedade brasileira do século XXI, e parece-me que a cada dia que passa, nos distanciamos da superação efetiva.
O que me leva afirmar que... ainda vivemos em uma sociedade de Clara’s.