Leandro Matos 30/10/2014O CÍRCULO | TUDO QUE ACONTECE DEVE SER CONHECIDO“MEU DEUS, PENSOU MAE. É O PARAÍSO.”
É dessa forma que o escritor americano Dave Eggers, inicia seu décimo romance ficcional. De abundante capacidade criativa, Eggers que possui outros três títulos publicados pela Companhia das Letras, em O Círculo, adentra em um terreno contemporâneo com espantosa propriedade, mas que curiosamente não compartilha de suas ideologias. Antes de título, O Círculo como enredo é uma empresa que pode ser compreendida, como uma fusão do Google, Facebook, Twitter e tantas outras redes sociais e sites, além de gadgets e tecnologias da nossa atual selva virtual. Uma megacorporação que por meio de princípios que prezam pelo bem estar de seus colaboradores e que em contraponto, exige uma demanda irrestrita de participação e entrega desses mesmos.
O espanto descrito por Mae Holland que abre esse texto é oriundo da sua surpresa e contemplação, ao conhecer as instalações do Círculo. Sua sede fica localizada em um campus da Califórnia e em suas paredes é possível encontrar palavras de incentivo e encorajamento do tipo: “sonhe”, “imagine”, “inove”. Mae que saiu de um emprego público maçante e sem grandes perspectivas, teve seu ingresso no Círculo conduzido por uma amiga dos tempos de faculdade, que no atual organograma da empresa, faz parte de um grupo seleto de pessoas, que possuem acesso à informações e planos confidenciais de macro escala.
Toda a mecânica do Círculo é liderada pelos Sábios, uma denominação figurativa de três indivíduos, que cada a sua peculiaridade (e excentricidade), colaboram na gestão e na arquitetura organizacional e operacional da companhia. Mae inicia suas atividades no setor de Experiência do Cliente (algo como o Atendimento a Clientes), só que mais interativo e pessoal. Mae precisa tratar de sugestões, reclamações e orientações sobre os serviços e produtos ofertados pelo Círculo e como obrigação tem que apresentar um retorno 100% positivo destes. No Círculo, o ambiente é apresentado como uma comunidade, onde funcionários compartilham não só o ambiente de trabalho, mas problemas, necessidades, interesses e objetivos em comum, tudo para fazer da empresa o “melhor lugar para se trabalhar”.
E o que inicialmente se desenvolve como uma gratificante integração para Mae, com o passar do tempo gera desgastes e questionamentos sobre sua real intenção dentro da companhia.
O livro segue de forma linear, sempre dosando a narrativa entre a empolgação (e apresentação) de um novo projeto e a passividade da protagonista ao ser engolida por um mundo novo, voraz e implacável. Mae é apresentada no inicio do romance quase como apática, diante de toda a expressão e alcance do Círculo e mediante ela vai crescendo como profissional dentro da companhia, Mae é conduzida e coagida a participar mais ativamente do coletivo do Círculo.
No decorrer da leitura, Dave Eggers vai detalhando sobre programas e projetos, que estão ou já foram desenvolvidos pelo Círculo, e que em muito se assemelham em suas gêneses a tecnologias e recursos já presentes em nosso cotidiano digital. Entre eles estão o SeeChange, uma ferramenta de streaming onde pequenas câmeras de alta definição monitoram tudo e todos, em qualquer lugar do mundo. O PastPerfect é um programa que visa traçar toda a árvore genealógica do usuário utilizando o cruzamento de dados e o reconhecimento facial em todas as imagens e dados existentes na Internet e o que há de mais original nesse contexto criativo, é o TruYou, uma rede unificada de identidades, onde os usuários possuem uma conta que unifica todos os seus acessos à bancos, sites de compras, redes sociais, apps e etc. Todos os dados desses usuários são submetidos ao software para que seja criados perfis autênticos, pois nesse cenário não existem fakes. Além disso, combinando o que já dispomos atualmente, o autor cria uma própria rede social para o romance.
“AGORA TODOS NÓS SOMOS DEUS. TODOS NÓS, EM BREVE, PODEREMOS VER E JULGAR UNS AOS OUTROS. VEREMOS O QUE ELE VÊ. VAMOS ARTICULAR O JUÍZO DELE. VAMOS CANALIZAR SUA IRA E DISTRIBUIR SEU PERDÃO. NUM NÍVEL GLOBAL E CONSTANTE. TODA RELIGIÃO ESTAVA À ESPERA A DISSO, O MOMENTO EM QUE TODO O SER HUMANO SERÁ UM MENSAGEIRO DIRETO E IMEDIATO DA VONTADE DE DEUS. ENTENDE O QUE ESTOU DIZENDO?”
Comparações com clássicos (distópicos) da literatura mundial como 1984 e Fahrenheit 451, por exemplo, são inevitáveis, até porque, acima da proposta de imaginar como seria a realidade de uma empresa que praticamente monopoliza tudo que é produzido na rede, o romance levanta uma discussão sobre a importância da informação nos dias atuais, levando a questionamentos de viés filosóficos ao contrapor uma narrativa permeada de temas universais como controle totalitário, privacidade, democracia, liberdade e individualismo.
NÃO DELETAMOS NO CÍRCULO
O ápice do livro fica por conta da completude, momento no qual, assim como está propositalmente visível no logotipo da empresa (vide a capa do livro), o Círculo se fechará, encontrando sua plenitude ao obter o acesso e o controle absoluto da informação do público e do privado em nível global.
PARA CURAR TEMOS DE SABER. PARA SABER TEMOS DE COMPARTILHAR.
Literatura distópica ou relato de um futuro próximo? Difícil se posicionar, quando cada vez mais, observamos a banalização do “eu” nas redes sociais, onde indivíduos aparentemente carentes de aprovação e aceitação se expõem gratuitamente em troca de alguns clicks, quando não, deturpam algumas funcionalidades ou parâmetros das próprias redes sociais em ‘beneficio’ próprio.
SEGREDOS SÃO MENTIRAS
COMPARTILHAR É CUIDAR
PRIVACIDADE É ROUBO
O livro possui um simbolismo sobre como a tecnologia e o acesso à informação pode ser no futuro. O mais cético poderia até achar demasiado, mas a provocação e o questionamento estão nas páginas do romance e é inegável reconhecer como está sendo construída essa cultura digital. Permeando sua narrativa com alguns dramas pessoais contemporâneos, a leitura de O Círculo se estabelece como um clássico moderno de sci-fi, algo como um vislumbre do quão longe chegaria o conhecimento humano.
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