matlima 04/05/2020
Interessante, mas carente de lógica e de empatia
Livro curto que praticamente transcreve seis palestras de Misses na Argentina, cada qual trazendo um ensinamento liberal.
Pontos positivos: A obra tem seu mérito pela linguagem simples e acessível para tratar de um tema naturalmente espinhoso. No conteúdo, faz críticas inteligentes ao socialismo, mostrando como a liberdade deve prevalecer para que não haja escravidão ou imutabilidade do status. Também demonstra como o controle sobre a inflação e os investimentos externos são importantes para o desenvolvimento.
Pontos negativos: em muitos aspectos, o livro lembra o discurso de um pastor lendo a Bíblia da forma que lhe interessa. Um verdadeiro proselitismo repleto de contradições internas. Com efeito, o autor está tão apaixonado por suas próprias ideias que, como um fanático religioso, ignora os pressupostos do Estado e não percebe as falhas em seu raciocínio. Por exemplo:
- Ao tratar da origem do capitalismo moderno, o autor ignora que foi o Estado quem propiciou o reconhecimento da propriedade privada na mãos de poucos, fazendo-o como forma de garantir a ordem e a paz com a contrapartida de que direitos sociais mínimos fossem observados. O autor quer só a propriedade, sem qualquer contrapartida.
- Ao falar sobre o desemprego, diz que foi graças aos empresários que os antes miseráveis passaram a produzir bens baratos e ganhar dinheiro para consumi-los. Só esqueceu de dizer que para a massa não há real poder de escolha quando a única opção que se tem é aceitar o primeiro emprego que tiver na frente (se houver). Nenhuma palavra foi gasta para dizer como o grupo de empresários reuniu capital para montar a indústria de massa e como ela usa esse mesmo capital para se perpetuar no poder
- Ignora as desigualdades sociais mais acintosas, acreditando que o mundo é um conto de fadas onde todos tem acesso a bens (?Hoje, nos Estados Unidos, a diferença entre um rico e um pobre reduz-se muitas vezes à diferença entre um Cadillac e um Chevrolet.?). Como se todo mundo tivesse carro...
- Ao tratar do padrão salarial definido pelo livre mercado, o autor traz o exdrúxulo exemplo de um ator de Hollywood, como se este fosse o modelo padrão de proletário em qualquer país do mundo. Ele acha mesmo que uma empregada doméstica tem o poder de escolher o salário que quiser na casa do seu Zé? Que um professor vai dar as cartas ao chegar numa faculdade qualquer (se é que tem vaga para ele lá)? Ele realmente acha que um cortador de cana do interior da Bahia ou um motorista informal de ônibus de São Paulo ganha um salário digno, justo ou sequer razoável e que ele foi fruto de uma estipulação do próprio trabalhador?
- Ao relegar tudo para o consumidor, ele acaba sendo conivente com sistema que prega a imoralidade e até mesmo crime se este gerar lucro
- Crença equivocada de que o empresário profere maiores valores vai sempre reinvestido comprando mais matéria-prima ou contratando mais trabalhadores e que, por isso, estes seriam beneficiados com aumento de salário antes mesmo de o empresário ter lucro. Um verdadeiro conto de fadas para crianças com parco discernimento da realidade.
- Crença de que quem manda no sistema econômico liberal são os consumidores, como se estes não fossem manipulados pelas propagandas e tendências criadas pelos detentores de capital econômico
- O autor reconhece que o povo é soberano e que este sabe tomar as melhores decisões. Paradoxalmente, entretanto, não reconhece ao povo o direito de formar um estado que controle minimamente as deficiências do livre mercado
- Trata do aumento do salário apenas pela perspectiva ruim (inflação) ignorando por completo que isso pode aumentar o poder de compra e, consequentemente, aumentar a demanda que, plebeia vez, estimula a oferta aquecendo a economia.
- Numa passagem, diz que ?Os sindicatos não têm como industrializar o país, não têm como elevar o padrão de vida dos trabalhadores?. Na outra, assevera que ?a política sindical consiste em elevar os padrões salariais acima do nível que estes alcançariam num mercado desobstruído?. Para piorar a contradição, diz que o governo inglês certa vez teve que atuar para sanear atos sindicais, tornando o valor do salário próximo ao real no livre mercado. Ora, então o Estado é capaz de auxiliar o livre mercado se for para prejudicar o trabalhador? Aparentemente, o que ele realmente quer não é a ausência de Estado ou de sindicato, mas sim o salário baixo.
- Diz que os EUA são um exemplo de capitalismo, para depois descrever a política tributária desse país, informando que o governo fica com quase tudo o empresário produz. Defende a ausência de Estado, mas reconhece que foi a própria atuação do estado americano que lhe permitiu alcançar o topo, sobretudo com os investimentos nas nações beligerantes no pós guerra.
- Filosofia de vida totalmente supérflua e consumista: ?Se as condições de vida são insatisfatórias e os salários são baixos, o assalariado que tenha sua atenção voltada para os Estados Unidos e que leia sobre o que ali se passa, ao ver em filmes, como a casa de um americano médio é equipada de todos os confortos modernos, pode sentir uma ponta de inveja. E tem toda razão ao dizer: Deveríamos ter a mesma coisa?. É o clássico Fetichismo da mercadoria, colocando nas costas do trabalhador a culpa por não alcançar um padrão superior ao que os iluminados empresários lhe proporcionaram.
Enfim, o autor possui uma visão do Estado como mero mecanismo garantidor de lucro, confundindo benefícios e serviços públicos essenciais com insumo de capital. O grande problema de Misses é viver numa torre de marfim que o distância completamente da realidade. Aparentemente é alguém que nunca teve que trabalhar como proletário ?no chão da fábrica? (como se dizia à época) e que, provavelmente, sempre lucrou com o trabalho alheio, estando tão acostumado a ter tudo o que deseja que agora quer até mesmo que o Estado lhe sirva de serviçal.
Falta-lhe, além de conhecimento de vida, empatia para com o próximo e lógica para fechar seu racionou dentro de um sistema que faça sentido, como atestam algumas das contradições que compilei nesse resumo.
O capitalismo sem dúvida é o melhor sistema já criado até o momento, pois propicia um mínimo de liberdades com condições de ascensão social. Ainda assim, está repleto de distorções que ora fomentam injustiças, ora ameaçam a sua própria existência. Negar isso é ser ingênuo, na melhor das hipóteses.
Além disso, se não houvesse a atuação do Estado, alguém acredita que as empresas se preocupariam em controlar o ruído excessivo, a emissão de poluentes no ar, o despojo de resíduos tóxicos nos rios?. Quem disse que sim evidentemente não conhece nem a humanidade, nem a história. Foi apenas após a imposição de leis que a ética começou a prevalecer no seio das grandes empresas. Historicamente, foi um movimento de fora para dentro e não o contrário.
A ação dos agentes econômicos se dá focada essencialmente na opção mais econômica, ainda que isso possa gerar danos ao meio ambiente e até mesmo ao consumidor. Conta-se, em muitos casos, com a ignorância ou alienação destes para majorar o lucro. Pior que isso, não raro se utiliza da publicidade para moldar a opnião do consumidor em conformidade com o desígnio empresarial. Veja-se o exemplo da cerveja, do cigarro e da coca cola, que por anos foram vistos como inofensivos e até saudável.
De um modo geral, o que ele possui é a crença de que a felicidade está fora do homem, sendo resumida no capital, um verdadeiro Deus salvador de todos os males, desde que o Estado não o atrapalhe. Ele exalta os empresários e possui indiferença com o trabalhador, desde que aqueles tenham lucros, está tudo ótimo, pois estes seriam indiretamente beneficiados. Não imaginava que o sistema evoluiria para o que temos hoje: máquinas que projetam máquinas para fazerem máquinas que trabalham no lugar que antes havia humanos.