Luis 07/06/2016
Homem ao chão
O verão londrino de 2005 foi marcante. No dia 2 de julho, um sábado, o Hyde Park foi sacudido pela histórica edição do Live 8. Um dia inteiro de concertos gratuitos, que se reproduziram em outras grandes metrópoles dos países integrantes do G8 , que visavam chamar a atenção para a dívida externa das nações pobres. Apenas cinco dias depois, a cidade se chocava com os trágicos atentados ao metrô, culminando na morte de 52 pessoas, de 17 nacionalidades diferentes. Em 21 do mesmo mês, uma tentativa de atentado frustrada traumatiza ainda mais os londrinos e deixa a polícia em estado de alerta máximo. No dia seguinte, o jovem mineiro Jean Charles de Menezes é executado, já totalmente imobilizado no interior do metrô. É essa triste e revoltante história contada com simplicidade e contundência por Ivan Sant`Anna em “Em Nome de Sua Majestade” (Objetiva, 2007).
Em pouco mais de 170 páginas, o autor desvenda não só a versão correta dos fatos, alvo de vergonhosas tentativas de ocultação por parte da Scotland Yard, como também a dimensão humana da tragédia, personificada na vida simples de sonhos e trabalho, que foi o combustível dos 27 anos de Jean Charles, tragicamente abreviados na manhã de 22 de julho de 2005.
Desde pequeno, Jean encantou-se com os fios e conexões , a ponto de, ainda criança, ter ajudado o pai a levar luz elétrica para o sítio da família antes que a companhia de energia mineira, a CEMIG, tomasse providências para tal. Aos 17 anos, vai para São Paulo fazer um curso técnico de eletricista, ofício que já desempenhava na pequena cidade natal, Córrego dos Ratos. Com o tempo, amadurece a ideia, comum a muitos mineiros, de desbravar o mundo. A primeira opção seria os Estados Unidos, projeto frustrado ao não conseguir a obtenção do visto. Incentivado pelo irmão da namorada, tenta Londres, que, a despeito da exigência do visto, tinha como procedimento de entrada no país uma temível entrevista com a imigração. O nervosismo aliado ao parco conhecimento do inglês, quase puseram tudo a perder, mas a sorte ajudou e um visto de seis meses lhe foi concedido em 2002. Jean até então nunca tinha saído do Brasil.
Três anos depois, já fluente no idioma e totalmente integrado à colônia brasileira, o jovem já fizera um pé de meia, que inclusive financiara muitas melhorias na propriedade da família, visitada pela última vez três meses antes de sua morte.
Sant`Anna reconstitui em detalhes tudo que aconteceu naquela trágica manhã de sexta feira, quando Jean Charles saiu de casa para mais um dia de trabalho, que parecia ser rotineiro. Por conta da tentativa de atentado da véspera, a polícia britânica havia deflagrado uma mega operação para prender os responsáveis, até então foragidos mas já identificados, sendo que um deles, Osman Hussein, morava no mesmo prédio do brasileiro, razão pela qual um policial ainda jovem e inexperiente estava de tocaia para avisar aos colegas sobre os passos do terrorista.
Por capricho do destino, no exato momento em que o policial se afasta do posto para urinar, Jean Charles sai para o trabalho, e ao contrário do que acontecera com os outros homens tocaiados, foi impossível fazer sua foto para envio à central que monitorava a atividade. Mesmo assim, ao avistar Jean, o policial dá o aviso que inicia a operação.
Ainda que se trate de uma história trágica, encharcada em covardia e incompetência, encontramos heróis em “Em nome de sua Majestade”. Lana Vandenberghe, funcionária do IPCC, uma espécie de corregedoria inglesa, teve acesso a um relatório secreto que detalhava as reais condições da execução de Jean, e que contrariava frontalmente a versão oficial que culpava a conduta do brasileiro e isentava a polícia de qualquer responsabilidade. Ficou chocada. Em um churrasco , decidiu se abrir com a amiga Lousie McGing, que por sua vez, namorava o jornalista da emissora ITN, Neil Garret. Em pouco tempo o furo virou notícia e a verdade veio à tona, não sem represálias ao trio.
No caminho da estação em que Jean foi morto, uma pequena banca foi transformada em santuário, repleta de fotos do rapaz e recortes sobre o caso. Segundo Ivan Sant`Anna, não há como não se emocionar. A operação, para usar um frio jargão técnico, foi rápida e cirúrgica : um primeiro policial entrou no vagão e imobilizou Jean. Em seguida entrou outro que fez os disparos. Todos na cabeça. Após o assassinato, a informação foi mecanicamente recitada pelo rádio : Homem ao chão.
Onze anos se passaram. Milhares de pessoas circulam diariamente pelo metrô mais antigo do mundo. Poucas devem se lembrar da tragédia, ainda que viajem sobre o sangue de um jovem brasileiro inocente.