R4 14/01/2015
O Sol de Camus nas páginas de quadrinhos
O estrangeiro em quadrinhos é uma adaptação da clássica e muito conhecida obra do autor argelino, Albert Camus. Adaptado pelo artista também argelino, Jacques Ferrandez. É uma graphic novel bastante fiel ao romance de Camus. Trata-se da conhecida história de Mersault, que logo depois de perder a mãe, envolve-se em uma briga com árabes e acaba sendo encarcerado por assassinar um deles na praia.
O romance abrange o tema do absurdo, e mostra a falta de sentido na vida. O protagonista Mersault é um homem desinteressado que perde a mãe e é culpado pela vizinhança por tê-la colocado em um asilo. Logo após o velório, reencontra Marie, sua namorada, e os dois vão à praia, ao cinema e ele mantém um comportamento que não condiz com alguém que acabou de perder a mãe, pois ele parece não entender o significado disso. Nesse sentido, Mersault é bem sincero e se recusa a mentir ou fazer parecer aos outros uma sensibilidade que não possui, simplesmente porque fica perplexo com o absurdo existencial.
O grande momento do romance acontece na praia, sob o sol escaldante da Argélia. Mersault envolve-se em uma briga de seu vizinho Raymond com árabes. Ele não possuía absolutamente nada contra o bando, mas em um certo momento, o Sol da Argélia teve um papel decisivo sobre a mente dele e ele acabou baleando várias vezes um árabe que tentava atacá-lo. A cena em si é um absurdo, pois ele mata um homem em uma briga que não era sua e sem muita razão. O Sol, nesse momento, torna-se uma das personagens do romance, pois é ele que desencadeia toda a tragédia que acontece a partir desse momento.
A partir de então, começam-se os absurdos institucionais. Mersault é condenado por assassinato a sangue frio de um árabe. Em seu julgamento, em vez de se discutir o crime, apenas os pormenores de sua vida pessoal são discutidos. Aquilo que comove a justiça e convence a população da atrocidade de seu crime não foi o tiro, mas o fato de ser insensível à morte da mãe, de ter ido à praia e namorado após sua morte e ter inescrupulosamente internado-a em um asilo. Além disso, o fato de não se inclinar a um deus, ou ao menos fingir acreditar.
Para o leitor, a condenação de Mersault é revoltante, porque o autor faz com que ele tenha uma punição muito maior que deveria por motivos absurdos. O livro é uma denúncia à falsidade da sociedade e às regras morais que são esvaziadas de sentido. Todos aqueles que acompanham as notícias de crimes irão reconhecer os fatos do livro como espelho da realidade e da manipulação da justiça e da mídia. Como exemplo, eu posso apontar os assassinos que passam a ser considerados bonzinhos após começarem a pregar em alguma religião, ou então aquele réu que passa a ser metralhado pela mídia que o acusa de fatos que vão muito além do crime pelo qual está sendo julgado.
Jacques Ferrandes, assim como Albert Camus, também nasceu na Argélia. Talvez seja por isso que ele conseguiu captar tão bem esse romance solar de Camus. Além das paisagens e do local parecerem bem verossímeis com os do livro, a cena em que o Sol aquece e perturba Mersault, o fazendo atirar várias vezes no árabe é muito realista e convincente.
A adaptação de livros para quadrinhos deve ser mais do que apenas um "facilitador" da leitura - geralmente, obrigatória - de um clássico, mas uma releitura e o novo olhar e um artista sobre uma obra literária. Nesse sentido, O estrangeiro desenhado por Jacques Ferrandez atende à minha expectativa e mostra uma visão que me fez ter um contato diferente com o clássico de língua francesa tão conhecido e relido, O estrangeiro de Camus.