Maitan 18/02/2018
Uma outra genealogia da moral
Se você já ouviu acusarem Nelson Rodrigues de imoral, essa peça pode se configurar como sua motivação exemplar. Certamente é uma das obras mais incômodas do autor, pois mexe com o principal tabu, talvez o interdito primordial, na vida familiar: o incesto. Não é difícil imaginar o seu público se escandalizar ao ver a peça e nem por que ela permaneceu 20 anos censurada pela ditadura.
Se o leitor pretende conhecer a obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues, sugiro não começar por esta, para não se assustar. Vá com calma, leia “Vestido de Noiva”, que é sua obra maior dada a importância na fundação do teatro moderno no Brasil, leia também “O beijo no asfalto” e, entre suas peças míticas, sugiro começar por “Senhora dos Afogados”.
O susto de “Álbum de família”, entretanto, pode esconder a maestria com que Nelson articula elementos míticos e psicológicos em uma roupagem de incrível verossimilhança em ambiente familiar tanto do início do século XX, período em que o enredo se desenrola, quanto de meados e fins do mesmo século. Até mesmo nas gerações que atravessaram o milênio, sua atualidade não é amenizada, ainda que o exagero possa se destacar ou que os limites da possibilidade pareçam ser forçados.
A referência a Nietzsche no título desta resenha é acidental, mas me arrisquei a mantê-la. Mesmo sem a profundidade do pensamento do filósofo alemão – e nem deveria ser esse o papel da arte dramática –, e sem tocar em tudo o que Nietzsche alcança, Nelson Rodrigues realiza uma leitura da sociedade que somente a arte poderia realizar. E, para não deixar de lembrar outro pensador que possibilitou o surgimento de peças como essa, Freud, também a seu modo, explica.
Arrisco-me, portanto, a afirmar a peça “Álbum de família” como um farol a iluminar os inalcançáveis e obscuros laços ancestrais. Porque o leitor atento verá que a sexualidade entre esses sujeitos é apenas uma das faces dessas construções existenciais, e mais, que a culpa e o peso devastador dos sentimentos que se enredam nessas relações é seu sintoma irremediável. Mas se há uma doença que governa o incesto e seus sintomas, que levam à autoamputação, ao fratricídio ou ao suicídio, o vírus mais apressadamente encontrado é a imoralidade. Se o leitor insistir mais um pouco, não escapará à questão de que a negação da moralidade, por consequência lógica, só pode ser produto dessa mesma moralidade.
Imagino os apocalipses que enfrentaram os ancestrais até que conseguissem sistematizar suas interdições sociais, moldando a duras penas modelos de conduta em busca de sua autopreservação e progresso, e como essa necessidade teve importância fundante nas religiões e culturas espalhadas pelo globo. Mais do que jogar luz sobre aquilo que ninguém quer perguntar, não dar as repostas é um ato de cautela, pois se estamos sujeitos a tamanho governo psicológico, que nos ultrapassa infinitamente, de que modo podemos enxergar a realidade mais imediata senão pelo delicado alerta de que “é preciso ter calma, pois, veja, o buraco é mais embaixo”?
Há algo por detrás dos escândalos de amor e ódio no seio da família. Não se trata, então, apenas do amor sexual, que suja as relações de pai e filha, mãe e filho, irmão e irmã, marido e cunhada. O escândalo é também a reação automática daquele que não se desarmou o suficiente para encarar a experiência que tensiona sua própria existência.
Nelson Rodrigues tem extrema frieza para neutralizar sua moralidade própria ou sua crítica à hipocrisia, enquanto autor, para conseguir alcançar aquilo que há de mais arcaico nos laços familiares e sociais, aquilo que parece ser justamente o disparador dessa necessária moral que teve de surgir e sustentar as famílias para que elas avançassem até a condição civilizatória. E é esse seu principal êxito, não o de esclarecer qualquer fato gerador de nada, mas questionar, com a mão pesada de uma alma sensível, a ordem das coisas no mundo e das relações na vida. É esse o fator que faz de Nelson Rodrigues não só o maior dramaturgo brasileiro da história, mas um dos maiores do mundo de sempre.