spoiler visualizarSintaxe 04/10/2023
Retratos
Verdade seja dita, esta não será uma resenha. Falarei brevemente do livro em si, isto é, da peça, mas meu recorte é outro; meu objetivo é distinto. Gostaria de perceber e apontar, ainda que incipientemente, as mudanças sutis de caracterização das personagens, dos eventos e dos lugares na peça da Guarnieri e na excelente adaptação fílmica de Hirszman.
Eles não usam black-tie é excelente na formulação dos caracteres em meio ao ambiente compartilhado pelos habitantes da favela. Cria-se, ao longo do drama, um claro jogo de contrastes onde a ternura da favela é contraposta à gélida metrópole, àlguns palmos de distância do morro. O filho, protagonista, vem de lá por haver sido criado pelos padrinhos provavelmente de classe média. Nisto surge o drama quando Otávio, seu pai, é o grande revolucionário cujo papel é de suma importância para a greve. É uma leitura deliciosa, com uma trama incrível de choque de gerações, falibilidades humanas e uma linguagem sincera, sem muitos adornos desnecessários. Discordo dos críticos nos quais o ato II pareceu ruim; pelo contrário, é o terceiro, quando desponta o clímax, que me senti mais entediado! Adorei o olhar intimista do segundo ato, e talvez ela seja até melhor para a forma-teatro.
Dito isso, tratemos, agora, do que me interessa. Contextualizemos: a peça original fora publicada em 1958, o filme, por sua vez, estreou nos cinemas em 1981. Drástica mudança de cenário político e social! Choca, porém, que à primeira vista a adaptação é muito bem comportada. Segue fielmente o texto original, e mesmo possui cenas inteiras retiradas direto do drama de Guarnieri. Pode-se dizer que enfatiza mais a ação, o conflito mais visual e menos falado, assim como explora, por exemplo, a família de Maria na qual é completamente anônima na peça, salvo por João, seu irmão. Esta é a impressão que fica na primeira sessão; a impressão que fica é estática. Nada mais longe da verdade, porém! Hirszman é sutil no manejo dos detalhes. Em 1958 o presidente da república era Juscelino Kubitschek e fora neste mesmo ano que o plano de metas foi erigido. Em breve teríamos o bom e velho Jango, defendo o interesse - com um grão de sal - das classes populares. Por isso o tom da peça é decididamente romântico e otimista: Otávio e Bráulio estão entusiasmados com a greve, Maria sente nada mais que amor e admiração pelo espírito de luta de seus companheiros do morro, mesmo Romana - com todo seu pessimismo... - exala um certo sentimento de camaradagem cujo vetor é a própria comunidade. Ainda é uma tragédia, não leiam errado! Mas em que sentido? Ora, a greve dá certo, o aumento chegará aos funcionários e o senso de comunidade nunca foi tão forte! Ninguém morre, apenas Otávio leva umas bordoadas mas o velho é duro na queda. A tragédia, pois bem, só ocorre no ambiente intra-familiar do núcleo central; sofremos porque a obra se dá na perspectiva de Tião, o fura-greve. Simpatizamos com o jovem cuja futura esposa está grávida, e entendemos o porquê de seu egoísmo latente. Portanto, dói ainda mais quando, ao fim, pai e filho devem debandar! É uma tragédia porque, apesar dos sucessos políticos, a família está fadada a ser cindida por razões inevitáveis, bem ao gosto ático de fato. O que resta é um gosto agridoce; contudo, o doce é marcante!
Do outro lado da moeda, está a adaptação. Esta apanha toda a atmosfera romântica da peça e a transforma em elegia de um tempo perdido... Estamos na ditadura; em seu fim, é certo, mas na ditadura. Um rapaz jovem, provavelmente forçado ao mundo do crime, é baleado pela polícia no meio da favela. Não que pudesse fazer diferente, mas foi um habitante do morro que denunciara para onde havia ido. Ora, quem faria diferente com uma arma apontada na cabeça? Por outro lado, Tião é caracterizado como não sendo dessa maneira apenas por ter vivido com os padrinhos mais abastados, e sim por ter passado a juventude inteira sob o jugo da ditadura empresarial-militar. Maria possui uma família complicada, com um pai beberrão e sem futuro, um irmão mais novo (diferente da peça onde ele parecia ter a mesma idade de Tião) e uma mãe tísica, com os pés na cova. Não sem razão, quem mata seu pai é um bandido qualquer, morador do morro. Se na obra original já víamos pequenos momentos de ponderação a respeito das maldades dos moradores, aqui Hirszman não teme mostrar a imobilidade de uma classe desunida, sem coesão efetiva. Não que o caráter comunitário do morro tenha se perdido inteiro, mas é a sua pujança social que parece estar se esfarelando. Não temos beberrões e assassinos no drama de Guarnieri, tampouco policiais fuzilando jovens negros, delatados por outros membros da comunidade! Otávio e Bráulio, desta vez, não estão entusiasmados com a greve. Permanecem os mesmos revolucionários da peça; entretanto, agora são mais frios, reconhecem que, se despontar a greve, uma categoria só não aguenta o tranco... Contra a polícia militar, ainda? Em 58 sequer imaginava-se algo assim! O conflito, então, vai se desenvolver com muito mais força: Tião tem razões ainda mais fortes para se opôr à greve, Otávio, ele mesmo, não possui essa esperança toda. Deste modo, a tragédia intra-familiar final é muito mais pessoal, bem menos por razões puramente ideológicas: não é que Tião furou uma greve que deu certo (não deu, já adiantando o próximo elemento a ser analisado), é que quando a coisa apertou ele arredou o pé - e por motivos completamente compreensíveis. Ao lado desta dor nuclear, temos a dor política e social. Bráulio é morto pela polícia, Tião é espancado pelos trabalhadores - e só não morre porque o mártir do filme o salva -, Maria quase perde o filho ao levar um golpe de um policial, e, tal qual a peça, Otávio vai preso, apesar de ser solto por dona Romana. A solidariedade conquistada para a greve é de fato bela, mas conflitos internos entre os trabalhadores, a adesão precipitada de apenas uma categoria e a repressão cruel da ditadura fazem dela uma empresa já combalida em sua gênese. A tragédia, aqui, é em dobro, a dor é alastrada e sentimos com mais peso a inocência perdida. Por outro lado, claro, não é uma obra puramente pessimista; porém, é elegíaca, pois mesmo a cena final, dos trabalhadores se reunindo em uníssono para homenagear o revolucionário morto pelos militares, possui tons de melancolia. É um apelo à luta, mas um apelo nada infantilmente afobado como em Eles não usam black-tie de Guarnieri. São leituras distintas, em momentos quase polares da história do Brasil. A população brasileira é outra, a visão de mundo é outra. Por isso este título: o mesmo povo, sob molduras distintas. Retratos de épocas outras. Se pintássemos o nosso, hoje, qual seria o resultado?