Antonio Luiz 24/03/2010
De política e cracas
Os populares ensaios do biólogo norte-americano Stephen Jay Gould, falecido em 2002, fizeram dele o único cientista, além do físico Stephen Hawking, a ser honrado como alvo de chacota em um episódio de Os Simpsons (“Lisa, a Cética”) – um atestado indiscutível de sua consagração como ícone pop, tanto quanto Paul McCartney e Magic Johnson, com o mérito de – ao contrário de Hawking – ser menos conhecido por sua imagem do que por sua obra.
Entre os colegas, a admiração foi menos que unânime. Gould não se furtava a desancar os criacionistas que levam o Gênesis ao pé da letra, mas também foi um crítico áspero da “ortodoxia darwinista” à Richard Dawkins, pronta a explicar todo tipo de comportamento (principalmente se egoísta ou estereotipado) como geneticamente determinado e, no limite, justificá-lo como adaptativo.
Não lhe foi perdoado questionar junto ao público leigo – e com uma habilidade com a qual poucos opositores podiam tentar rivalizar – o viés conservador dessa tradição que pressupõe uma evolução gradual, contínua e inteiramente determinada pelos genes.
Um dos raros cientistas naturais a aderir ao pós-modernismo, abominado como “impostura intelectual” por muitos de seus colegas, Gould foi acusado de erigir “uma nova ortodoxia, o darwinismo para os politicamente corretos” (palavras do antropólogo Robert Foley, em "Os Humanos antes da Humanidade").
"A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci" é uma amostra representativa desse trabalho, que demonstrou como continua a ser possível fascinar o público leigo com ensaios científicos de boa qualidade, mesmo se Gould usava e abusava do barroco no estilo e do estrambótico nos temas.
Há um método nessa loucura. A ênfase nos aspectos mais grotescos e inusitados da natureza evidencia que a evolução é incontestável e suas manifestações são fascinantes, mas absolutamente inumanas e amorais.
É o contrário da velha tradição de piedosos tratados de história natural inaugurada por Robert Boyle (leia o ensaio “A lei de Boyle e os detalhes de Darwin”), que procuravam demonstrar como cada animal e cada planta havia sido projetado para uso e benefício do homem e para demonstrar a sabedoria e bondade de Deus.
E também se afasta de uma visão mais moderna, mas igualmente enganosa – a do evolucionismo linear, que descreve a história natural como uma progressão contínua do simples para o complexo, do inferior para o superior, impulsionada por uma seleção natural também sábia e infalível.
Para Gould, a evolução é um processo irregular e hesitante, com caussas acidentais e rumos fortuitos. Um exemplo é o ensaio “O triunfo dos rizocéfalos”, sobre um bem-sucedido parasita de caranguejos, aparentado com as cracas, mas reduzido a um irreconhecível ovário com raízes, no apogeu de um ciclo de vida intricado e horripilante: um desmentido vivo à noção convencional de progresso.
Em relação à história da ciência, Gould faz uma crítica análoga: enfatiza o papel dos erros e das idéias preconcebidas na ciência e desmente a noção de um esclarecimento progressivo. Destaca a presença do antigo no moderno e vice-versa.
Um exemplo é o ensaio que dá o título a esta coletânea e explica o pioneirismo de da Vinci em dar a explicação correta para a presença de fósseis marinhos em montanhas italianas, nos quais os contemporâneos viam provas do Dilúvio ou produto de emanações mágicas. Não foi produto de um pensamento que ignorava os preconceitos de seu tempo, mas da tentativa de provar uma tese heterodoxa, mas caracteristicamente renascentista: a de que a Terra seria um ser vivo, no qual terras e águas “circulariam” como sangue ou seiva.
Gould sempre advertiu contra a pretensão de aplicar o método científico a questões de ética e usar a natureza para justificar posições morais e políticas. Seu distanciamento do cientificismo frio e confiante de muitos de seus rivais pode tê-lo levado a excessos ocasionais, mas é pena que o debate científico tenha perdido um participante tão hábil e desafiante.