Luis 04/09/2016
Sob as águas
Ainda que por caminhos diversos, Ivan Sant`Anna vem honrando a tradição familiar de grandes escritores. O aviador e ex-executivo do mercado financeiro, que largou tudo para viver da escrita, começou explorando a ficção, terreno dominado pelo irmão, o genial Sérgio Sant`Anna e pelo sobrinho André. Publicou “Rapina” (1996) e “Os Mercados da Noite” (1997) histórias movimentadas e que seguiam a cartilha algo fácil dos best sellers. Sem escrúpulo algum, pode-se dizer que havia muito pouco de literatura ali.
Em 2000, o autor dá uma guinada em direção à não ficção com o excelente “Caixa Preta”, que conta a história dos (até então) três maiores acidentes da história da aviação brasileira. A partir daí, Ivan virou uma espécie de historiador de grandes tragédias, voltando a se debruçar sobre desastres de avião (“Perda Total”), atentados terroristas (“Plano de Ataque”, sobre o 11 de setembro) e, ampliando o leque, relatou o assassinato do brasileiro Jean Charles em Londres (“Em nome de sua Majestade”), o crash da bolsa de Nova York (“1929”) e, agora, volta-se sobre um dos acontecimentos mais traumáticos da nossa história recente : o naufrágio do Bateau Mouche.
Para se ter uma ideia do impacto dessa tragédia, basta citar, entre os tantos mencionados por Ivan, o depoimento pungente de Bernardo, filho da atriz Yara Amaral, a mais célebre vítima daquela noite : “Ela não é mais a atriz de três Moliére, ela não é mais a atriz de 28 novelas, ela não é mais a atriz que fez cinquenta peças, não é. É a atriz que morreu no Bateau Mouche”.
Tudo aconteceu na noite do réveillon de 1988. Pertencente ao mesmo grupo proprietário do restaurante Sol e Mar, em Botafogo, o Bateau Mouche IV, assim como seu “irmão”, o III, foram alugados pela empresa Itatiaia Turismo para um passeio, com direito à ceia a bordo, saindo da sede do restaurante e indo até Copacabana para assistir à queima de fogos mais famosa do Brasil. Os ingressos foram totalmente vendidos, alguns, poucas horas antes da saída, marcada para as nove da noite.
“Bateau Mouche- Uma tragédia brasileira” (Objetiva, 2015) detalha também todas as modificações por qual passou o barco, projetado 16 anos antes para acomodar no máximo 20 pessoas. Os donos do Sol e Mar já eram os terceiros proprietários da embarcação, que foi comprada em 1980, reformada e rebatizada com o nome que já era utilizado nos outros barcos do grupo (Por ocasião do naufrágio , os Bateaus 1 e 2 já tinham sido desativados). A capacidade foi ampliada para 153 ocupantes.
A reforma, apesar de alterar drasticamente o projeto original, não impediu que o estado de conservação do barco se deteriorasse agudamente, fato que a decoração “festiva” da virada do ano tentava disfarçar. O autor conta que existiam vários furos no casco, pontos de ferrugem e dois problemas que seriam cruciais para o acidente, se é que pode ser assim chamado : o defeito em uma das escotilhas que a impedia de fechar adequadamente e a quebra da válvula do vaso sanitário. Esses dois “detalhes” permitiriam que, em meio à agitação do mar, cerca de quatro toneladas de água entrassem por baixo do Bateau Mouche, desestabilizando-o totalmente.
Um dos aspectos que fazem a diferença nos livros de Ivan Sant`Anna é que, ao mesmo tempo que se esmera para explicar tecnicamente as causas de cada fato, ele joga luz sobre a dimensão humana das tragédias, conduzindo a narrativa através dos vários personagens, sobreviventes ou não, que a protagonizaram. Essa preocupação é tão latente que a edição, logo no início, mostra um índice com todos que são citados ao longo do texto.
Um dos exemplos foi o mestre arrais do Bateau, Camilo Faro da Costa. Com 51 anos de idade e 25 de profissão, Camilo já vinha se queixando com a família das condições do barco que comandava. Por vezes, falava em abandonar o emprego antes que um acidente acontecesse, mas, acossado pela terrível crise econômica que o país vivia, seguia trabalhando. As seis da tarde, já que passaria a noite no leme do Bateau, ligou para casa e desejou feliz ano novo. Foi sua despedida.
A já citada Yara Amaral vivia um ótimo momento profissional. Pouco tempo antes foi encerrada com grande sucesso a novela “Fera Radical”, em que ela vivia a antagonista da mocinha interpretada por Malu Mader. A atriz tinha medo do mar e explicou isso em uma conversa com os filhos uma semana antes do naufrágio, o que não a impediu de aceitar o convite de um casal de amigos e levar junto sua mãe para celebrar o réveillon.
O barco zarpou às 21:15 e as condições do mar, embora ainda estivessem na calma baia de Guanabara, não estavam lá muito favoráveis. À medida que avançava rem direção ao Pão de açúcar para contorná-lo e adentrar em mar aberto para Copacabana, a embarcação “jogava” cada vez mais perigosamente, o que levou inclusive à uma mudança nos planos com relação à ceia, que foi antecipada, mas que estava programada para quando passassem próximos à praia vermelha, onde o mar já estava bem mais agitado.
Nesse momento, aconteceu um episódio que foi por muitos interpretado como um sinal que poderia ter mudado o destino daquela noite, mas que acabou entrando para o rol das decisões erradas que levou à tragédia. O barco foi interceptado por uma lancha da Capitania dos Portos que faziam vistoria nas embarcações que iam para Copacabana. Ao entrarem no Bateau e se reunirem com a tripulação, o próprio Mestre Camilo declarou que suspeitava que havia superlotação. Os oficiais da capitania determinaram então que o barco voltasse para a sede do restaurante a fim de que fosse feita uma recontagem.
Os passageiros começaram a perceber que algo estava errado, pois o barco voltava e ninguém dava uma informação mais precisa sobre de fato o que estava acontecendo. Ao chegar no Sol e Mar, os donos da Itatiaia questionaram os membros da capitania e foram feitas pelo menos duas recontagens. Não houve uma vistoria mais apurada no barco. Segundo alguns, aconteceu uma discussão entre os oficiais, o armador gerente do Bateau Mouche, Mário Triller, que estava no barco e os donos da Itatiaia. Naquele instante, a capitania tinha poderes para interromper o passeio, mas não foi o que aconteceu. Em decisão polêmica e obscura, uns falam em “carteirada” dos donos da Itatiaia, que conheciam o então governador Moreira Franco, outros apontaram para um suposto suborno, o Bateau Mouche IV foi liberado para a sua última viagem.
Camilo Faro seguiu então a todo vapor para Copacabana, pois a volta não prevista ao cais, havia atrasado muito a programação. Faltava pouco para a meia noite. O mar seguia ainda mais agitado e quando chegasse à ponta da barra, Faro teria que tomar a decisão crucial de seguir em mar aberto ou voltar para as águas seguras da Baia de Guanabara. O barco continuava adernando muito para a direita. O desconforto dos passageiros já dava lugar ao medo. Pratos e copos se espatifavam sob o balanço cada vez mais furioso da embarcação. Chegaram à ponta da barra, logo depois do costão do Pão de Açúcar, já não havia mais como voltar, mas dava para mudar a rota e, em vez de seguir adiante para Copacabana, entrar na praia Vermelha. Eles perderiam a queima de fogos, porêm a situação voltaria a estar sob controle, mas Camilo resolveu seguir em frente selando a sorte de todos.
Faltando 15 minutos para a meia noite, o Bateau passava na altura da ilha de Contunduba, último ponto antes do mar aberto, quando a água que invadia o fundo do barco, tanto pela válvula do vaso, como pela escotilha e os furos do casco, atingiu a casa de máquinas paralisando o motor. O barco ficou à deriva e, precisamente às 23:50, foi atingido por uma onda mais forte que dessa vez o fez virar. Estava consumado o naufrágio.
Cinquenta e cinco pessoas morreram. A tragédia só não foi maior, porque outras duas embarcações, que também se dirigiam na última hora para Copacabana, testemunharam tudo e socorreram boa parte dos passageiros. O Iate Casablanca, que saíra do iate clube com seu proprietário Oscar Gabriel e a traineira Evelyn & Maurício, pilotada pelo dono, o pescador Jorge Vianna que vinha de Niterói com a família e amigos para ver a queima de fogos. Alguns dos momentos mais comoventes do livro abordam o heroísmo, principalmente de Jorge, que colocou a sua própria segurança em risco para salvar os ocupantes do Bateau.
Passados quase 28 anos, como infelizmente é comum no Brasil, muitos ainda lutam na justiça por reparação. Os donos da Itatiaia e da Sol e Mar, a princípio colocados como culpados, apelaram para o fato de que, tecnicamente falando, os responsáveis por assegurar as condições da embarcação naquela noite eram o gerente Mário Triller e o mestre Camilo Faro. Ambos mortos no naufrágio. O imbróglio segue.
O que não teve seguimento foi a vida das 55 pessoas que em uma festa de celebração da vida, a entrada de um novo ciclo, foram arrastadas para o fundo do oceano, sucumbindo junto com o velho ano.
O Bateau Mouche foi içado do mar nos primeiros dias de janeiro de 89 e vistoriado para o processo que se iniciava, por conta disso, e pelo fato da questão judicial se arrastar até hoje, o barco não pode ser desmontado. Segundo Ivan, ele segue ancorado em local ignorado, provavelmente se desfazendo em meio à ferrugem como uma espécie de monumento macabro àquela noite trágica.