spoiler visualizarEscritores com Insônia 14/09/2019
Apenas Mediano
Enquanto checava os preços dos livros de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, a Amazon me recomendou uma série chamada “As Crônicas do Trono de Pedra Bruta” — que, sinceramente, é um nome muito ruim quando traduzido para português, já que em inglês o termo “unhewn” substitui metade do título traduzido. Comprei o livro sem pensar muito pela similaridade com uma das minhas ideias, onde três filhos de um monarca seriam enviados para três lugares diferentes por circunstâncias específicas. Queria saber o quão parecidas as duas histórias seriam e talvez tirar umas boas referências do livro. Felizmente, as similaridades são pouquíssimas — até porquê essa ideia não será mais uma série própria, e sim um acontecimento dentro de outra história minha. Infelizmente, não houve boas referências.
A história começa depois do assassinato do Imperador Annuriano — não é um spoiler, isso está na sinopse —, que tem três filhos, os quais protagonizam o livro; dois homens e uma mulher. Kaden está há meses de distância de sua casa, vivendo com uma ordem de monges chamada Shin. Valyn está treinando para se tornar um kettral, uma espécie de exército mercenário letal que voa em enormes pássaros de onde recebem seu nome. Adare continua na capital e quer vingar seu pai e entender a origem da conspiração contra sua família. A história pula entre os três, com Adare tendo apenas alguns poucos capítulos, e quase todo o livro sendo dividido entre Kaden e Valyn, por motivos que até fazem sentido, embora tenham seus defeitos.
Até o momento, li apenas o primeiro livro da série, “O Imperador das Lâminas” — existe um problema de tradução quanto a esse título que eu ainda vou comentar sobre. Já vou começar dizendo que o livro não é ruim, mas também não é tão bom. Apesar dos capítulos iniciais tanto do Kaden quanto do Valyn serem muito interessantes.
Depois do prólogo, a história abre com Kaden perseguindo um bode dos Shin que deixou escapar, apenas para encontrar o animal decapitado e com o cérebro removido do crânio. Pouco depois, vemos Valyn participando da investigação de um navio perto das ilhas onde os kettral vivem. O navio foi atacado e só há mortos de um grupo, sem muitos indícios de quem os atacou. Valyn é o único a receber a informação de um homem perto da morte sobre o assassinato do Imperador Sanlitun — enquanto Kaden só recebe a informação umas 300 páginas mais tarde. Antes de morrer, o homem diz que alguém nas Ilhas Qirin está envolvido nisso.
O grande problema com essa estrutura é que a história acaba demorando um pouco mais do que devia para andar em certos pontos. Valyn, por exemplo, é infinitamente mais interessante que Kaden por causa dos acontecimentos em seus capítulos — os quais não vou spoilar tanto assim, pelo menos não ainda. Adare também é mais interessante que Kaden pela intriga política em seus capítulos, mesmo aparecendo muito menos do que ele. Grandes partes dos meus problemas com esse livro é justamente sobre isso: caracterização. Especialmente a do Kaden e a dos antagonistas.
Embora seus dois irmãos sejam mais velhos, é Kaden quem será o futuro imperador. Adare não pode herdá-lo por ser uma mulher. Valyn, por outro lado, não nasceu com os Olhos de Intarra, íris brilhantes como fogo que os identificam como supostos descendentes da deusa Intarra. Porém, como Kaden está tão longe de sua capital e estudando os ensinamentos de uma ordem de monges, ele não passa por um arco de aprender a lidar com a pressão e responsabilidade de sua posição, nem precisa estudar manobras políticas ou militares. É claro que existem motivos justificáveis para ele estar vivendo com os Shin — já que a conspiração envolve cultura e mitologia desse mundo, além da parte política — e é claro que ele eventualmente terá de lidar com essas coisas que mencionei, mas não precisa por grande parte do livro.
Quando o leitor recebe informação o suficiente para ligar alguns pontos, uma grande porção do livro já se passou, onde Kaden não faz praticamente nada de interessante além de sua descoberta no primeiro capítulo. Ele e Valyn podiam muito bem ser o mesmo personagem, apenas em situações diferentes; esse é um dos defeitos da estrutura narrativa nessa história. Digo “nessa história” por que você provavelmente está se perguntando “E quanto As Crônicas de Gelo e Fogo?”.
Eu não planejava fazer essa comparação, mas como existe uma menção na língua do livro sobre “Leitores de George R.R. Martin devem adorar essa estreia”, assim como essa estrutura, eu vou ter que comentar um pouco.
As Crônicas de Gelo e Fogo seguem uma narrativa em escala ainda maior, pulando entre ainda mais personagens em ainda mais lugares do que O Imperador das Lâminas. O problema é que Valyn, Kaden e Adare passam quase todo o livro no mesmo lugar, então é muito difícil manter o mesmo ritmo de apresentação de detalhes e acontecimentos interessantes. Faz sentido o Kaden receber as notícias com muito mais atraso do que seus dois irmãos? Sim, claro que faz, mas isso volta para o defeito da pouca urgência de seu personagem no livro.
Além disso, praticamente tudo que acontece no livro tem relação com essa conspiração — outra coisa que é deixada bem clara tanto na sinopse quanto no começo do livro. Enquanto, novamente, n’As Crônicas de Gelo e Fogo, os personagens lidam com diferentes plotlines relacionadas a diferentes coisas que se interligam em certos pontos. Enfim, meu objetivo não é comparar essa série com a obra prima de George R.R. Martin, apenas queria usar um exemplo para explicar minha opinião — apesar de eu ainda estar tentando entender essa menção na língua do livro, já que as histórias são completamente diferentes.
Uma coisa que eu apreciei inicialmente, é a similaridade do mundo com uma sociedade asiática, é bom ver alguma coisa além de Europa Medieval. Isso é um detalhe legal, mas impacta pouco a narrativa, não existe tanto aprofundamento na construção de mundo. É um ponto positivo, mas pouco relevante.
O livro segue pulando entre os três com uma certa conexão entre os capítulos. Algo que será discutido no capítulo de um irmão também será mencionado no capítulo do outro, de forma que o leitor entenda algo que o personagem que tem apenas um lado da informação não sabe. Não tendo capítulos completamente desconexos, o livro acaba fluindo um tanto melhor.
Falarei agora sobre os acontecimentos com cada um dos irmãos separadamente, portanto, haverá mais spoilers. Pule para a parte da conclusão se quiser, ou continue caso já tenha lido o livro ou não se importe com os spoilers, talvez eles até te deixem mais interessado em ler o livro. Meu maior defeito com o livro é sobre os antagonistas, e só irei comentar sobre eles nessa parte de spoilers abaixo.
Valyn:
Embora não seja complexo, Valyn é provavelmente o melhor personagem da história. Desde o começo tem de lidar com ameaças à sua vida e o peso de não poder confiar em ninguém, ao mesmo tempo que se prepara para o Julgamento de Hull e passa os dias com uma garota que ama. Acontece que tem problemas em sua plotline que o diminuem.
Posso citar por exemplo, todas as conveniências com relação a sua suspeita de Annick estar conspirando contra ele. Tudo bem que as coisas são explicadas mais tarde e a explicação de fato faz sentido, mas você precisa se lembrar que até chegar lá, a questão dos nós das cordas ficou martelando na minha cabeça num eterno “Isso é tão forçado”.
E quanto aquela cena da Annick torturando os coelhos? Tortura de animais pode ser usado para estabelecer a psicopatia de um personagem. Mas, no final, Annick não era a antagonista, então o que foi aquela cena? Ela de fato é uma psicopata, mas o livro não se importou mais em comentar sobre aquilo? Ou foi pura conveniência para te fazer acreditar que era ela? Ambos os casos são defeitos.
Eu não vou ser super detalhista com os personagens, mas tenho outros problemas mais claros que posso citar e diminuem tanto os personagens individualmente como o livro no geral: os antagonistas.
Sami Yurl tem praticamente uma única descrição de seu sorriso ao longo do livro inteiro, porquê essa é a extensão de seu personagem. Não existe sequer uma tentativa de aprofundar ele ou Ballendin, eles são apenas obstáculos com uma ou duas características de personagem. Não são nem um pouco ameaçadores ou interessantes. Em um livro desse tamanho, teve tempo mais do que suficiente para construir eles nem que seja um pouco. E, caso você esteja se perguntando “Mas isso não iria deixar claro quem é o conspirador?”, então eu te pergunto: você realmente não conseguiu perceber desde o momento inicial que eram os dois?
Sério, é muito óbvio, eles sempre foram os antagonistas. Se a intenção era não revelar a identidade dos conspiradores, então o que deveria ser feito é uma caracterização decente de vários suspeitos, não ignorar completamente todos eles. É justamente isso que cria o defeito do quão ruins os antagonistas são.
Eu gostei bastante da coragem do autor de matar o interesse amoroso do Valyn logo no primeiro livro, imagino que isso vai gerar algumas coisas interessantes nos próximos livros. Gostei do Julgamento de Hull, da árvore sem folhas e do fato de que todos viram traidores no final. O que eu estou dizendo é que tem coisas interessantes em conceito e estética, mas também tem diversos pontos na execução do que existe entre essas coisas que me incomodou muito.
Kaden:
Resumir o Kaden é bem fácil: ele é o Valyn, só que pior. Kaden é a pessoa que menos precisa lidar com problemas no livro e passa metade das páginas tentando aprender sobre os ensinamentos dos Shin. Eu realmente achei estranho ele ser o protagonista e estar com tanto foco no meio da capa, mas ser tão desinteressante como personagem — e inclusive, segurando um bastão que ele nunca usa no livro inteiro.
Como Kaden se tornou o imperador, e terá que simultaneamente aprender os ensinamentos dos Shin e aprender a governar, imagino que ele será muito melhor ao decorrer da série. Como eu já disse antes, não ficaria surpreso se o segundo e terceiro livros fossem consideravelmente melhores. Afinal, o primeiro volume tem praticamente o mesmo arco tanto para Kaden quanto para Valyn e é todo sobre uni-los.
Quanto aos antagonistas de Kaden, eles são simplesmente introduzidos tarde demais. Tenho certeza que é perfeitamente possível introduzir um personagem tarde e fazer a audiência gostar dele ou construir um antagonista interessante em pouco tempo, mas esse não é o caso de Micijah Ut e Tarik Adiv. O que me deixou preocupado, já que eu fiz algo parecido quanto a introduzir “vilões” tarde em um livro.
O motivo de porquê esses antagonistas não funcionam pra mim também é bem simples: eles não fazem nada.
Desde que são introduzidos, não existe um grande foco em suas interações e relações, e nunca vemos eles sem ser pelos olhos de Kaden — e mais tarde, Valyn —, então nosso conhecimento sobre ambos é bem limitado. Entendo perfeitamente que estão em um lugar onde é difícil lhes dar muito o que fazer e que não vemos capítulos focados neles para não revelar algumas informações tão cedo. Mas será que foi uma troca que valeu a pena? Ter quatro antagonistas super fracos em troca de guardar alguma informação para o próximo livro? Eu não preciso dizer qual é a minha opinião, né?
Aliás, se todo herdeiro de Annur é enviado até os Shin para aprender sobre o vaniate, então como que ninguém nunca percebeu isso? Ou isso foi percebido, mas simplesmente nunca mencionado no livro? É estranho não ter questionamento disso.
Adare:
Eu sinto que conheço Adare muito melhor do que conheço Kaden, mesmo sabendo que isso não é verdade. Faz sentido a personagem ser mais expressiva se aparecerá menos do que os outros, me parece uma técnica válida para caracterizar alguém em menos tempo; não, eu não acho que ela seja excessivamente expressiva ao ponto de ser irrealista. Adare também está na parte mais interessante do livro: a intriga política. Mesmo não sendo tanta, o pouco que tem foi o suficiente para eu querer ver mais dela.
Vou aproveitar para responder uma crítica sobre a personagem que eu vi na internet. Não faço ideia do quão comum é essa crítica, mas eu acho ela completamente infundada: Adare foi criada em um meio político e estudou o assunto desde criança, então ela ser tão irritada é problemático e até machista.
Tipo, sério? Ela sempre quis ser a imperatriz e nunca gostou do patriarcado de Annur, seu pai foi assassinado e seus irmãos estão do outro lado do continente, mas ela devia ser calma por ser uma política? Desde quando ser um político é sinônimo de inexpressividade, aliás? Por mais que você possa me dizer que se espera um nível de calma de um político, isso de maneira alguma significa que ela devia ser uma personagem estóica: pelo contrário, estresse gera reações, e intriga política gera estresse.
Bem, posso dizer que achei um tanto injustificado a decisão da Adare lá no finalzinho do livro sobre o Il Tornja. Aliás, lembra sobre o título do livro ter um problema de tradução? É aqui que ele acontece.
O título em inglês, The Emperor’s Blade, significa “As Lâminas do Imperador”. Quais são as Lâminas? Os filhos que protagonizam o livro. Então, por que o título foi traduzido para “O Imperador das Lâminas”? Isso é super confuso, já que te dá a impressão que o livro será focado no Imperador Sanlitun, mas ele está morto. Depois disso, te dá a impressão de que será o título de Kaden, mas não é. Eu adivinhei isso super cedo no livro e passei todo o resto do tempo pensando “não é possível”. Bem, é, infelizmente.
Conclusão:
O Imperador das Lâminas é um daqueles livros que eu terminei e fiquei “É só isso?”. Até agora tenho a impressão de que aconteceu tão pouca coisa nas páginas que fica difícil justificar seu tamanho. Não é um livro particularmente enorme, mas é grande.
Quanto a escrita do livro, não achei a voz do autor particularmente cativante nem nada, mas também não é horrível, só que ele tem alguns vícios narrativos. Como por exemplo o uso constante de frases como “se ele se sentiu incomodado, não demonstrou”. Incomodado é substituído por outra reação ou emoção, mas essa frase aparece com uma frequência enorme ao longo do livro.
Também existem momentos onde há divagação para explicar um assunto que, embora não sejam infodumps horríveis ou coisa do tipo, ficam com aquele ar de falta de atenção, escrita preguiçosa, se preferir.
No fim, o livro é uma grande introdução mediana para o que pode ser um segundo livro muito bom. Já faz alguns anos que está para sair o terceiro livro da série por aqui, eu consigo ler em inglês sem problemas caso leia o segundo e fique interessado no terceiro, mas talvez seja um motivo que te impeça de comprar o livro.
Mas então, vale a pena?
Bem, o livro não é tão caro. Frequentemente vejo ele abaixo de R$30 na Amazon e você pode ler pela assinatura do Kindle Unlimited se tiver. Se quando leu a sinopse e os comentários que fiz sobre o livro, você pensou que é exatamente o tipo de coisa que queria ler, então recomendo que compre. Não te desencorajo a ler o livro, mas deixo claro que na minha opinião o livro não passa de decente. Se minhas críticas soaram como algo que você perceberia e ficaria incomodado, bem, aí você decide se quer ler mesmo assim ou não. Afinal, não estou aqui para tirar seu entretenimento, apenas para explicar o meu.
Para mim, O Imperador das Lâminas, de Brian Staveley, foi um livro totalmente mediano, que oscila entre interessante e entediante.
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