Samyle 27/06/2018
"'União' era um triste substituto para igualdade. A glorificação do papel feminino, mau substituto para a livre participação na vida do universo" Betty Friedan
A "Mística Feminina" trata de um período específico dos EUA (o que talvez explique a inexistência de novas publicações/edições no mercado brasileiro), pós 2° Guerra Mundial, em que houve um esforço em massa para trazer as mulheres, que tiveram de substituir os homens que foram ao combate em seus empregos, de volta à sua "natural e indispensável função" de dona de casa.
O livro destrincha todos os mecanismo de persuasão utilizados, desde as revistas femininas (lidas à exaustão pelas mulheres) – que glorificavam o papel da dona de casa e tratavam a mulher que seguia suas aspirações profissionais e seus estudos como uma mulher incompleta, masculinizada, que nunca se casava ou tinha filhos – como também as teorias sociológicas funcionalistas e a teoria psicanalítica de Freud (no tocante à mulher), que eram facilmente desmentidas por estudos realizados durante aquela mesma época, mas não divulgados, porque não convinha à mística feminina.
As consequências foram desastrosas: logo se percebeu que as donas de casa, que viviam as vidas de seus sonhos (isto é, casadas e com filhos), sofriam em massa de uma doença sem nome, de origem psíquica mas com reflexos em seus corpos (a autora chega a listar alguns sintomas físicos comuns), que ninguém sabia ao certo como resolver. A reclamação delas era comum: sentiam que suas vidas eram vazias, sem sentido.
Betty Friedan explora o tema com maestria, rebatendo os argumentos da mística feminina, seja com dados de que a mulher que seguiu uma carreira profissional tinha uma vida sexual e amorosa mais bem resolvida do que as das donas de casa, seja comparando os sintomas dessas donas de casa com os apresentados por judeus em campos de concentração, ou fazendo uma análise das consequências sociais (como os filhos super protegidos de muitas dessas mulheres, alguns com características que se assimilavam ao autismo ou a retardo mental em decorrência dessa criação ou que se entregavam à promiscuidade aos treze anos).
A autora não deixa nada de lado, explorando também como a mística se prestava aos interesses do capitalismo ou como muitas dessas mulheres, após verem sua função biológica terminada, tentavam retomar seus estudos e o próprio sistema, com horários incompatíveis com suas obrigações de mães, não lhes permitia esse acesso.
O resultado dessas ideias, é claro, foi estrondoso. Esse livro é considerado um dos estopins para a 2° onda do feminismo, causando, como a própria capa revela, uma revolta nas mulheres americanas.
Ok, mas afora essa questão história, esse livro ainda é relevante atualmente?
Diante de toda a riqueza do pensamento de Friedan, de toda a sua pesquisa para desvendar os mecanismos de persuasão, a resposta não poderia ser diferente de sim. Em tempos de "não seja feminista, seja feminina", é importante perceber que essa feminilidade não é biológica e sim uma construção social que evolui (felizmente!) com o tempo, tendo esse livro disponibilizado dezenas de bons argumentos e exemplos acerca disso. É um livro, também, que nos faz mais sensíveis à situação de nossas mãe/avós, que viveram essa mística feminina.
É importante salientar: o problema não é ser dona de casa, veja bem. A questão é que esse era o único caminho socialmente aceito para a mulher (e aqui, claro, também devemos fazer um bom recorte de raça e classe).
O único problema que encontrei, o que talvez "se justifique" pela época de publicação (1963), foi o modo preconceituoso que a autora tratou a homossexualidade em determinado trecho do livro.
Em suma, é um livro incrível, recomendadíssimo.
Alguns trechos inesquecíveis para mim:
"A glorificação do "papel da mulher" parece estar em proporção com a relutância social em tratá-la como um ser total, pois quanto menos função verdadeira tem o papel, mais decorado com detalhes sem importância, para esconder seu vazio. Este fenômeno foi observado, em termos gerais, nos anais da ciência social e da história – a Cavalaria na Idade Média, por exemplo, e o pedestal artificial da mulher vitoriana – mas talvez seja um choque para a emancipada americana descobrir que se aplica, de modo concreto e em grau extremo, à dona de casa dos Estados Unidos".
"Mas, conforme observou um dos poucos especialistas em assuntos domésticos que perceberam o absurdo da mística feminina, a parte do trabalho doméstico que ocupa mais tempo "pode ser feita com eficiência por uma criança de oito anos"".
"Por mais que a carreira doméstica seja racionalizada para justificar tal desperdício de potencial humano; por mais engenho que os psicólogos usem na escolha de termos científicos, a fim de dar a impressão de que jogar a roupa na máquina é um ato semelhante a decifrar o código de genética; por mais que o trabalho doméstico se expanda, ocupando todo o tempo disponível de uma pessoa, a verdade é que apresenta pouquíssimo desafio à mente de um adulto".
"Em nome da feminilidade é incitada à fugir à evolução humana".