Diego Rodrigues 20/07/2020
"Não vejo nenhuma opção, nenhuma escapatória plausível para a possibilidade de ser feliz. Queria não nascer nunca."
"Então aqui estou, de cabeça pra baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. (...) Agora, em posição invertida, sem um centímetro de espaço pra mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado dia e noite contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter."
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E assim se apresenta o narrador dessa história, um bebê ainda dentro da barriga da mãe. Privado de fazer contato visual com o mundo do exterior, mas não auditivo, o bebê começa a formar sua concepção de mundo baseando-se em fragmentos de conversas próximas que consegue captar e nos programas de rádio, podcasts e audiolivros que a mãe escuta. É dessa forma que ele descobre que seus pais, Trudy e John, estão se separando. E mais que isso, que sua mãe e o amante planejam matar seu pai. O amante de Trudy não é ninguém menos que Claude, irmão de John e, portanto, tio da criança. Sim, estamos diante de uma trama shakespeariana.
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Enquanto um thriller se desenrola do lado de fora, dentro do útero vamos acompanhar as reflexões, os devaneios e as aflições desse narrador bebê. Suas preocupações, que antes eram a guerra, a fome, a injustiça e a pobreza no mundo, coisas que a mãe ouvia nos noticiários, agora são com coisas bem mais pessoais. O bebê passa a desenvolver um grande ódio pelo tio Claude, que além de tramar contra seu pai, o próprio irmão, ainda coloca o narrador em uma situação desesperadora toda vez que faz sexo com Trudy. A mãe também não está isenta de sua raiva, amor e ódio estão sempre em conflito nessa relação entre mãe e filho. Mesmo grávida, Trudy manda tanta bebida pra dentro que o bebê aprende a diferenciar os vários tipos de vinhos e começa a desenvolver o seu próprio gosto. Enquanto direciona a sua raiva para o tio, para a mãe ou até mesmo para o pai, em uma roleta russa de ódio, o bebê também não poupa a si mesmo. O medo de perder o pai, medo da mãe ser presa pelo assassinato e ele nascer numa cadeia, medo da rejeição e do abandono, tudo isso começa a afetá-lo e pensamentos depressivos, de suicídio, de culpa e de vingança surgem em sua mente até então inocente.
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"Enclausurado" foi minha primeira experiência com o renomado escritor britânico contemporâneo Ian McEwan. Sei que essa está longe de ser considerada uma de suas obras máximas, mas posso dizer que foi uma boa porta de entrada. A escrita do autor, repleta de críticas atuais e de humor ácido, me cativou bastante. Gostei da experiência, do elemento do narrador ainda não nascido e das várias facetas que o livro tem. "Enclausurado" pode ser lido como um thriller, um drama, um exercício psicológico ou filosófico, não importa, independente da forma que for encarado ele agrada. Agora que li o meu primeiro McEwan estou ansioso para mergulhar em outras de suas obras, sinto que pode estar surgindo um novo autor favorito pra mim.
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