Krishnamurti 05/05/2019
O grimório poético de Anna Apolinário em: “Zarabatana”
Por uma dessas feitiçarias de que a vida é pródiga em nos meter, vi-me recentemente com o livro “Zarabatana”, da escritora Anna Apolinário em mãos. E então fiquei sabendo que é seu terceiro livro publicado, e que se divide em duas partes temáticas. “Hiperquânticos tambores da língua” e “Os punhos cerrados do amor”. No Prefácio somos informados que “a primeira parte da obra invoca cantos, ressoam tambores míticos, invocando a ancestralidade feminina, que anuncia o irrecusável passeio em seu sedutor grimório poético.” Grimório é o nome que se dá, desde a Idade Média, àqueles livros de conhecimentos mágicos ou exotéricos, alguns deles de autoria atribuída a bruxas ou feiticeiras que levaram gente às fogueiras da inquisição.
De fato. Já na segunda parte: “Os punhos cerrados do amor”, notamos que, para além de um refinado olhar estético e artístico”, a autora perquire as variadas facetas desse sentimento a que damos o nome de amor, sobretudo em seu viés de negatividade e equívocos em que, desde sempre, o enredamos. Quem puder ler o livro, há de notar, se bom observador, que na última página, na parte inferior, depois do logotipo da Editora está uma advertência com todas as letras: “Escrito entre luas e danças, sob o efeito do retorno selvático de Saturno, estes poemas são feras obscenas à espera do leitor que as alimente. Linguagem guilhotina ungida pela Deusa, livro terceiro que abriga o abismo, amuleto de constelar vertigens”.
Aí temos clara e cristalina a cosmovisão da autora que elegeu todo um simbolismo a abarcar aquilo que Aline Cardoso (no Prefácio), classifica como uma poética onde há “setas disparadas contra o leitor, sutilmente preparadas com o veneno lancinante de imagens explícitas”. O resultado é que temos poemas dispostos nas duas partes da obra, sob temáticas recorrentes que são mesmo o amor, a sexualidade, os mitos e misticismos, “elementos que se concretizam nitidamente nos poemas em seqüências de imagens fortes, inquietantes, desautomatizadoras” com que a autora atinge em cheio os leitores.
Veja-se por exemplo o poema “Furtiva”:
“costuro / um canto absoluto // borda de abismo / que a minha voz decifra // estou dentro / de ira e doçura invadida / lambendo / a cartografia do infinito”.
E também o poema “Caderno Turvo”, ambos da primeira parte da obra:
“torna-te / ferida virulenta / pássaro celerado / incineração de bebês / abortados // uma aberração bélica / uma mancha de menstruação / no pau de um polaco // o grito o vômito o veneno a víscera / a morte por anafilaxia // no campo de concentração do poema / estendo-me rama violenta / zona de palavras mortíferas / mistério fecundo / sem êxtase: danação”.
Já o escritor e professor de Teoria Literária e de Semiótica Expedito Ferraz Júnior se questiona em texto de Posfácio, quanto a aspectos que nos instigam ante a leitura de poemas que trazem uma marca tão forte e tão peculiar da autora, com sua “veemente afirmação de estilo. O professor Expedito identifica ainda o primeiro traço que ressalta na leitura como uma impostação elevada, seja no emprego de vocabulário raro, ou na reverência com que invoca seus modelos artísticos e literários. É vero. Assim também como o “recurso freqüente a uma dicção retórica, reforçada em perífrases, apóstrofes, inversões, figuras que denotam apuro estético, ainda quando as imagens são deliberadamente cortantes e opressivas”.
Anna Apolinário usa e abusa do gosto de palavras raras, dos arcaísmos e termos científicos. Em suma, e é verdade, “o contexto semântico do livro carrega um exotismo que se manifesta frequentemente numa espécie de culto do antigo e do distante”. Outra característica que também salta aos olhos é a intensa utilização da figura de estilo conhecida por sinestesia, ou seja, o cruzamento de sensações, numa constante associação de palavras ou expressões nas quais ocorre a combinação de sensações diferentes numa só impressão.
Veja-se o poema “Cornucópia”:
“o amor desnuda / esporas, aves, vísceras / pirografa tempestades / no sangue das estrelas // com chifres dourados / dança / eletrocutando minhas veias // antioratório / tríptico demoníaco / Vênus em Virgem // desce e engendra / a peçonha do poema”.
E também o poema “Salmo”.
“teu sexo escreve o evangelho de Sade / “Mea vulva, mea vulva, mea máxima vulva” // sou uma oração suja / roçando tua nuca / rosário rebentado de volúpia // sou uma hóstia / em tua língua / ardo”.
Que pensar de um poema como “Lince”?
“amor sulcado de cólera / energia escura de pedras // anjo e víscera / avança, destroça // a língua aguça / o corpo epilético / da selva // caninos celebram / áurea miséria da carne // buquê de carcaças”.
Com efeito uma poética muito particular a de Anna Apolinário. Em alguns poemas, melhor dizendo em boa parte dos que abordam a questão do amor, nos sentimos como seres monstruosamente epilépticos, que, aliás, muitos de nós vamos mesmo nos transformando, seres em anafilaxia (que é aquela reação alérgica sistêmica e grave, causada por uma reação do sistema imunológico a uma substância a qual o indivíduo é alérgico). Vejamos finalmente, justamente o poema “Anafilaxia”:
“vísceras revoltas / mucosas contaminadas / sonhos presos na epiglote / a vida tornou-se tóxica // a grande chaga é não amar”.
Realmente uma linguagem “guilhotina” fora do lugar-comum e das facilidades semânticas que faz pensar. Faz-nos sentir qual a grande “chaga” que nos atinge em cheio.
Livro: “Zarabatana”, poesias de Anna Apolinário, - Editora Patuá, São Paulo – SP, 2016, 108 p.