Higor 17/10/2020
'20 melhores livros do século 21': Livro 14
A falta de escritores não estadunidenses incomoda em uma lista tão significativa como esta 'Melhores Livros do Século XXI', pois mostra o quão limitada é ao escolher nenhum autor oriental em um mundo que conhece, cultua e aclama Haruki Murakami, por exemplo, além de, claro, não se esforçar em conhecer autores importantes de outras língua que, sem dificuldades, romperam barreiras políticas, sociais e literárias e com certeza mereciam aparecer nesta lista.
W. G. Sebald é o único alemão a aparecer na lista, com o seu potente e, sinceramente, merecedor de uma posição mais alta que a 14ª, 'Austerlitz'. Se a falta de reconhecimento grita na lista, ao menos é gratificante ver, depois de uma australiana, um chileno e uma italiana, uns com livros questionáveis, uma escolha tão certeira que todo leitor deveria ao menos se propor a conhecer, tamanha a importância e bagagem do livro.
'Austerlitz' possui tantas camadas, uma mais interessante que a outra, em determinado momento paralelas, mas que se fundem e não se corrompem, ou fazem com que o livro fique confuso ou perca sua essência. Nem mesmo os temores que o livro possui (apenas 4 parágrafos nas mais de 280 páginas ou uma frase que permeia incríveis 7 páginas) e que assustam leitores pouco exigentes ou receosos estão ou foram montados aleatoriamente. A leitura se torna tão fluida e prazerosa, que se tratam de meros detalhes a serem encarados sem maiores alardes.
O narrador de 'Austerlitz', que não sabemos quem se trata exatamente, viaja com frequência à Bélgica na década de 60, por motivos profissionais e até mesmo que o próprio não sabe dizer, quando, sentado na Estação Ferroviária Central de Antuérpia, conhece o jovem Jacques Austerlitz. O que chama a atenção do narrador é que Austerlitz não possui traços de apatia, cansaço ou outros sinais de um viajante enfadado, mas o mesmo não parava de encarar as paredes da estação e escrever e desenhar com ferocidade. A partir de uma conversa, nasce a amizade entre os dois, com alguns hiatos de tempo, mas que sempre são riquíssimas, não importa quanto tempo tenham ficado sem se falar.
Depois de mais de vinte anos de amizade e conversas sobre tudo o que se possa pensar, desde arquitetura, guerras, fortificações, fotografias, estudos, em que o mesmo sabe pouco ou nada sobre a vida privada de Austerlitz, o próprio, em um encontro, decide contar a história de sua vida, ou a vida que, por quinze anos achou ser sua, até que se deparou com a missão de peregrina-la e tentar, enfim, descobrir quem de fato é.
É então através de um monólogo sem-fim, mas muito bem escrito e que o leitor não quer que acabe, que sabemos que Austerlitz é um professor de História da Arquitetura que chegou à Grã-Bretanha com pouco menos de 5 anos, fugido de um comboio judeu da Tchecoslováquia, onde todos os vestígios de sua vida anterior foram apagados. Adotado por um pastor calvinista e sua esposa, e a verdade vêm à tona quando ambos falecem, e então parte em busca de resposta, a começar das mais simples, que é a origem do seu nome Austerlitz, até sobre o paradeiro da mãe e do pai.
Há muitos anos eu não lia um livro tão impactante quanto 'Austerlitz'. Em parte por eu ser estudante de arquitetura e estar familiarizado ou ter interesse em história da arquitetura, o que foi um prato cheio pra mim, com muitas marcações de post-its, mas principalmente por falar de um jeito tão diferente, sincero e doloroso sobre a Segunda Guerra Mundial.
O personagem principal, sua aversão automática a falar ou visitar a Alemanha, assim como suas pesquisas sobre o passado, que o levam, e a nós também, leitores, a bibliotecas mofadas, campos de concentrações preservados, fortalezas e estações ferroviárias, mostram uma Europa pouco conhecida, mas muito bem guiada neste livro. Guiada, aliás, não importa o país onde ambos estão, ou Austerlitz foi e comenta com maestria os mais ínfimos detalhes: Holanda, França, Bélgica, Inglaterra.
Com certeza uma das melhores do ano, quiçá da vida, este livro merece a honraria alcançada, mas ainda precisa ser mais propagado, conhecido e lido, pois em suas páginas há mais riqueza, conteúdo e reflexões que muitos livros mais contemporâneos, até mesmo de história, que se perdem em um vazio ou monotonia que não agregam em nada.
Doloroso sem ser apelativo ou piegas, 'Austerlitz' fala sobre um assunto comentado à exaustão, e quase sempre de maneira a arrancar lágrimas de leitores mais frágeis. Uma verdadeira aula não somente de História da Arquitetura, mas História Europeia, merece muitas releituras, diante da dimensão de conteúdo que possui.
''20 melhores livros do século 21' é uma lista encomendada pelo site de cultura da BBC, em que diferentes especialistas foram responsáveis por eleger os melhores livros do mais recente século. Conheça os demais livros, todos já resenhados:
15. A amiga genial, Elena Ferrante.
16. A linha da beleza, Alan Hollinghurst.
17. A estrada, Cormac McCarthy.
18. NW, de Zadie Smith.
19. 2666, Roberto Bolaño.
20. O grande incêndio, Shirley Hazzard.
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