spoiler visualizarMehehelissa 12/09/2023
Pois a chave para todo enigma humano está na sombra.
Uma daquelas obras em que há poesia a ponto de algumas partes parecerem uma grande sombra de irrealidades com suspiros de realidade. Este suspiro aparece como uma muleta para ajudar nós, meros mortais, a entendermos as ideias e reflexões incumbidas em cada conjunto de palavras.
"A chave de todo enigma do drama humano está na sombra"
As sombras parecem significar algo na narrativa. Tive a sensação de que os personagens as temem e as evitam, mas é somente após as encararem, vê-las, ouvi-las, senti-las, que encontram de fato a luz, a liberdade, a paz, o começo e o fim.
Os suicidas que adentravam a floresta e voltavam apegados à vida eram aqueles cuja meditação permitia entender a escuridão e, por isso, saíam mais sábios: "E sabiam todos o quanto as ideias era a conquista dos sábios"
Já a luz é apresentada como uma espécie de "olhar sobre nós, no entanto, incapaz de ver por dentro". Quando penso na questão da luz e sombra me vem à mente duas personagens: o sábio e a menina Matsu.
A figura do sábio é a própria Sombra materializada com todos seus significados, como a concentração de todo o Conhecimento, a concentração do Medo. Aliás, é intrigante como o sábio diminui sempre que Itaro e Saburo enfrentam suas angústias.
"Itaro imaginou que o monge diminuíra até ser impossível apequenar-se mais. A maturação, de todo modo, era acontecimento que ocorria excluído de tamanhos. A maturação era sem tamanho. Gritou: como a escuridão."
"O austero monge era inteiro o mesmo que a circundante natureza"
A figura da irmã cega também é me dava sensação de ligação com o natural imaterial, é como se esta mulher fosse apresentada como completa em si, como consubstanciada ao mundo selvagem. “As palavras eram as flores que Matsu plantava”. Matsu pedia por um jardim seco, um jardim em que sempre teriam lágrimas para o molhar.
”Os olhos de Matsu nunca haveriam de amadurecer. Estariam para sempre vazios de imagens, vazios de luz. Contudo, por oposto, ela mesma era um lugar de muita coisa."
Mas a trama principal gira entorno de dois homens imprudentemente poéticos: Itaro, o artesão e Saburo, o oleiro.
"Itaro, torpe, desprezava Saburo e a sua frgiidade amorosa, por a considerar um sentimento tão desadequado à miséria em que viviam”
Italo e Saburo são como o Mal que há no Bem e o Bem que há no Mal, alimentando profundo ódio um pelo outro. O artesão agia de maneira a me causar repulsa em determinados momentos. Um homem austero, bruto e utilitarista em tantos momentos. Descrito com um péssimo hábito de matar animais para ganhar vislumbres do futuro, sem grandes demonstrações de afeto, pouco conectado espiritualmente, teimoso e focado apenas no trabalho: “Itaro praticava o trabalho como se a dignidade estivesse completa no provimento” com um grande repulsa às manifestações amorosas de Saburo.
Saburo é descrito como um homem mais velho e apaixonado, mas de maneira tão intensa que beira o infantil. o inocente, o utópico. “O oleiro habituara-se a ser de ternura. Considerava que a natureza haveria de premiar os que usavam a sua própria semente para melhorar o mundo". Dizia querer mostrar o amor onde só se via a morte: planta flores na selvageria da floresta para afastar a brutalidade como forma desesperada de proteger a esposa.
Ao decorrer da história, os personagens saboreiam suas angústias e acabam se entendendo na tristeza, o Mal alimentando seu Bem e o Bem amadurecendo seu Mal.
Acho que a transição é nítida quando Itaro cumpre os 7 sóis e 7 luas no fundo do poço e “amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho”. Decide n~so matar o animal, e o carrega consigo enquanto sai do poço. Uma das cenas mais lindas do livro todo.
O final com a cegueira, com a aceitação e a existência simples, artística, poética foi de tirar suspiros, me despedir dos personagens foi uma experiência difícil de colocar em palavras.
Esse livro entrou para os meus preferidos e com certeza uma ótima primeira impressão do autor. Tenho certeza que precisaria ler de novo, já com todas as ideias propostas devidamente desenvolvidas na cabeça, para conseguir resenhar sobre todos os aspectos que gostaria. Quem sabe no futuro.
"Escurece, e não me seduz tatear sequer uma lâmpada. Aceito a noite". Quão imprudente