Maitan 18/02/2018
Pequeno apêndice do inferno
Até mesmo os grandes autores podem sofrer uma obra menor, penso a princípio. Mesmo com a defesa de Sábato Magaldi ou Carlos Castello Branco, no prefácio do livro, muitos podem ler Doroteia como uma das mais infelizes peças do autor. Mas, muita calma nessa hora, passada a impressão imediata, vamos discorrer um pouco mais.
Encerrando seu ciclo mítico [de quatro anos e quatro peças apenas: Álbum de Família (1946), Anjo Negro e Senhora dos Afogados (1947) e Doroteia (1949)], Nelson Rodrigues potencializa sua liberdade criadora a ponto de confundir a fronteira entre a genialidade e nonsense. A loucura da peça, entretanto, é amainada com uma estrutura narrativa extremamente bem calculada e elementos e cenas cômicos que sustentam seu estatuto de farsa.
Aliás, Doroteia é denominada pelo autor como “farsa irresponsável”. É certo que Nelson Rodrigues projetava o efeito de suas peças no público médio que frequentava o teatro, tanto que chamou de irresponsável essa peça, assim como, a partir de Álbum de família, passou a chamar seu próprio teatro de desagradável. Isso me lembra aquela ideia de que Nelson Rodrigues escrevia para chocar o público. Continuo considerando isso uma bobagem, não é tão simples encontrar gratuidade em obra de gênio – é preciso ficar com o pé atrás com as primeiras impressões negativas, os caras acabam adquirindo algum salvo conduto, não tem jeito. E no final, ainda que o saldo pareça negativo, muita, mas muita coisa apenas escapou.
Dessa vez o tema não é o incesto (apesar da obsessão sexual estar, é óbvio, presente). Para começar, veja bem, Nelson já inicia sua peça invocando as musas: a primeira fala é um sonoro “Quem é?”, que é ao mesmo tempo a pergunta mais batida e mais prazerosa de se ouvir no início de uma peça (a referência ao “Quem vem lá?” de Hamlet nunca é acidental).
Antes disso, só para situar, tudo se passa na casa das três viúvas, que é uma espécie de pequeno apêndice do inferno, onde três primas e a filha de uma delas estão, por opção, encerradas em eterna vigília (a menina, filha de D. Flávia, antagonista de Doroteia, inclusive, já nasceu morta no 5º mês de gestação). E essa penitência autoimposta é fruto do grande mal que amaldiçoa aquela família há gerações (veja aí o eco da família de Édipo, lá do mito grego). Essa maldição se manifesta como um dos elementos-chave em torno dos quais o enredo se engendra: a náusea. O outro elemento é o jarro.
A náusea é o fenômeno pelo qual todas as mulheres dessa família passam na noite de núpcias. Simples assim, não há pormenores. O jarro é o encosto que persegue Doroteia e a obriga a lembrar de um momento específico do passado. Essas mulheres têm a missão de evitar a qualquer custo as tentações do sexo – por isso não dormem, pois “sabem que, no sonho, rompem volúpias secretas e abomináveis”.
Há muitas questões que não se solucionam no enredo e pontos cegos que me deixaram uma série de impressões, ao mesmo tempo que evocaram sutil e nebulosamente a mitos consagrados ou a uma espécie de lugar mítico que experienciamos muitas vezes sem nos dar conta. Longe de querer fazer uma análise minuciosa nesta breve resenha, e nem apontar questões técnicas com relação à estrutura dramatúrgica, compartilho o que primeiro me chegou sem muito me debruçar sobre:
Doroteia é uma peça incômoda, não pelos seus temas, mas porque é instável, irregular. Doroteia é uma peça que se sustenta nessa instabilidade, muitas vezes apagada pelo cômico ou pelo mito. Não consigo saber se ela está para mais ou para menos. Só não consegui parar de ler, o que já significa muita coisa.
Se eu indicaria a peça para leitura? É claro que sim. Ela vai continuar sendo aquela peça que desagradará a gregos e troianos, e eu acho que é por isso mesmo que ela merece ser lida. O saldo final é que não dá para simplesmente ignorar a força bruta que Nelson Rodrigues usou para se desdobrar e criar seu mito. Aliás, há desafio maior para um dramaturgo, em qualquer tempo, que o de criar um mito?