Arsenio Meira 06/03/2014
O regente da Água
Milton Hatoum é, sem favor algum, um dos mais talentosos escritores brasileiros da atualidade. "Dois Irmãos" e "Cinzas do Norte" são dois romances que reinventaram o segmento regionalista na literatura brasileira. "Órfãos do Eldorado" é uma novela (um conto longo que se esqueceu de ser conto ou um romance curto, repelido pelas convenções do catálogo literário). Hatoum continua as obras anteriores, se considerarmos que ele desvenda a vida e a história e os modos da região Norte, um pedaço do país riquíssimo de toda boa riqueza (leia-se cultura), mas pouco conhecido pelos próprios brasileiros, incluindo-se neste rol o subscritor destas linhas.
É ali, num cenário rodeado de água por todos os lados, que se desenrola a vida de Arminto Cordovil, ao qual somente pode ser acrescido o epíteto de “filho de Amando Cordovil”. A novela nos dá o abraço de Amando, o pai, no filho Arminto, como o despertar do sexo de Arminto na rede de Florita, como a noite de amor místico com Dinaura, como o rosto de Angelina, mãe morta na foto recortada. Mas a unicidade da narrativa combina história e mito, ficção e fábula, lenda e verdade. Por isso, Dinaura se confunde com uma criatura mágica do rio ou com outra mulher, Estrela – céu espelhado no rio. E Amando, benquisto por todos (menos pelo filho), tem o coração vil de seu sobrenome. Manaus, claro, é a cidade terrena, miserável, e a outra, submersa e encantada.
Perdido entre a exigência de seguir os negócios da família e os prazeres da quase irrestrita liberdade, Arminto usa os espaços de sua vida vazia para contar lendas e mitos amazônicos, contos de botos que engravidam virgens e mulheres que largam o mundo para viver numa cidade encantada, no fundo do rio. E a narrativa funde essas instâncias: a real, onde Arminto luta contra a figura do pai, que o subjuga em todos os sentidos, onde ele desenvolve sua relação ambígua com Florita, mulher que o criou, onde ele escuta conselhos do advogado Estiliano; e aquela outra, quase que sobrenatural, onde ele se perde na obsessão por uma órfã misteriosa.
Comparado a "Cinzas do Norte" ou a "Dois Irmãos", obras anteriores de Hatoum, impressionantes por sua delicadeza, Órfãos do Eldorado não parece diminuído um milímetro sequer. A opção pelo formato bem mais conciso, penso, permitiu ao autor desenvolver toda a sua habitual sutileza sem o desperdício habitual e involuntário inerente quando um escritor narra, narra, narra e termina por agastar palavras e sensações. O resultado é uma prosa convincente, sedutora, emocionada. Bem escrito, o enredo apóia-se na nostalgia que permeia o olhar de Hatoum sobre sua região, sobre as lembranças de um tempo/lugar muito peculiar. O personagem principal não chega a criar demasiada empatia, posto que o elemento mais pulsante da história é a Água. É ela que fornece modo de vida à família Cordovil, que permite a fusão dos imigrantes estrangeiros e dos índios, é na água que Arminto deposita histórias de infância, esperanças e desassossegos de amor.
Tudo sempre ocorre tendo a água por testemunha. Mas a água é fugidia, assim como as chances que Arminto deixa passar. E se Arminto não se deu conta, Hatoum não deixa passar nada: ele une a fluidez natural, mansa, da sua prosa, seu estilo com uma capacidade de dialogar inexpugnável, partindo de um microcosmo, com os sentimentos mais universais, eis a Literatura que se perfaz e nos concebe momentos especiais, só nossos, de mais ninguém.