Carlozandre 21/01/2010
O Eldorado de Hatoum
Muito antes do cinema, a literatura já se construía com cenas, e a primeira delas na novela Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum é arrebatadora: uma índia pára na frente do rio, arenga lamentações em língua indígena, falando que se apaixonou por um belo homem que mora no fundo das águas e pretende se juntar a ele. Como hipnotizados, os que a observam só se dão conta do que se passa após a índia haver nadado um bom pedaço de rio, longe demais para ser salva.
Essa é a cena chave de Órfãos do Eldorado, já que seu protagonista, Arminto, herdeiro de uma empresa de navegação vivendo às vésperas da I Guerra Mundial em Manaus, vai repetir ao longo da narrativa, e em vários níveis, o gesto da índia, uma entrega cega e apaixonada a algo que poderia representar encantamento se não fosse ruína. O livro é parte de uma coleção na qual escritores de diferentes nacionalidades relêem em narrativas modernas mitos clássicos da literatura: a canadense Margaret Atwood reescreveu a Odisséia pelo ponto de vista de Penélope, David Grosman deu sua visão para a história bíblica de Sansão, por exemplo. Ah, sim, e o escritor russo Victor Pelevin releu o mito de Teseu, o labirinto e o Minotauro em um romance que já comentamos aqui.
Hatoum usa o “Eldorado” do título para fazer referência ao mito amazônico da Cidade Encantada, um lugar utópico no fundo do rio para onde determinadas pessoas tentam ir, encantadas pela força mágica das águas. No livro, essa cidade é representada pela jovem órfã Dinaura, que magnetiza as atenções de Arminto com olhos oblíquos. A mulher e o rio são signos equivalentes em Órfãos de Eldorado, e não é à toa que Arminto, fascinado pela primeira, descuide do segundo, representado pelo negócio que herdou do pai.
Após a primeira cena, o livro desacelera um pouco ao abordar a relação de Arminto com seu pai ainda vivo. O mal-estar instalado entre eles, embora bem conduzido, remete a situações semelhantes do anterior Cinzas do Norte. Algo que, entretanto, não dura muito. A novela é curta, concisa, e logo Dinaura aparece na trama (simbolicamente no velório do pai do protagonista, morto sem que ambos tivessem oportunidade de se reconciliar) para encantar o leitor como encantou o personagem.