MatheusPetris 20/08/2023
O primeiro (Mudança) e último capítulo (Fuga) de Vidas Secas formam um círculo, um ciclo. A narração conta a história de uma família, mas representa toda uma classe de pessoas. Inevitavelmente, recuperei a imagem do quadro Retirantes (1944), de Portinari. Vi, pela primeira vez pessoalmente, essa obra, há poucos meses atrás, pois faz parte do museu do MASP. Seu tamanho, para além de seus traços, impressiona, assusta. É uma tela enorme, o que torna o sofrimento daquela família ainda mais agudo. E não é o que Graciliano Ramos faz ao pintar essas secas vidas? O primeiro e o último capítulo: molduras.
Bazin, em um famoso texto chamado “A Pintura e o Cinema”, afirma que a “A moldura é centrípeta, a tela centrífuga”, isto é, enquanto a moldura nos impele ao centro da tela, a tela faz o contrário, nos movendo para fora. O chamado “fora de quadro” também comunica. E o livro que pinta, o que faz? Ambos os movimentos. A escrita de Graciliano me parece residir nesse embate: o fora e o dentro, o centro e o periférico.
Qual a problemática central do livro? A miséria, uma leitura apressada pode responder. Pode até ser, em um plano exclusivo do conteúdo. Mas e a linguagem? Não seria ela a verdadeira protagonista? Miguel Torga, que guarda semelhanças com Ramos, e inclusive foi influenciado pela prosa de 30, se sentia culpado por representar pessoas que não poderiam lê-lo. Todavia, como representar uma fala, um diálogo daquele que não possui a linguagem necessária para expressar certos sentimentos, reflexões?
Fabiano, Sinha Vitória, os filhos, a cachorra Baleia, grunhem, gritam, se comunicam por gestos, pelo silêncio. Tanto Fabiano quanto Vitória estimam um personagem que só é delineado no passado: Tomás da bolandeira. Fabiano invejava sua erudição, os tantos livros que lia; Sinha Vitória estimava sua cama, uma cama decente. O movimento é o mesmo: se voltam a um passado e a uma pessoa de referência, alguém considerado “inteligente”, já que eles se auto-comparam com bichos. É Fabiano quem se corrige, não é homem, “é bicho”, afinal, “viva longe dos homens, só se dava bem com animais”.
A última frase é do narrador, uma instância aparentemente neutra, mas que se mistura com as personagens. A escolha do autor de mudar o foco narrativo e seguir a perspectiva de vários personagens, nos permite adentrar ainda mais nas entranhas da obra, deles, do quadro pintado, nesse movimento de fora para dentro e de dentro para fora. É o narrador (novamente) quem diz: eles não precisam de estudos, precisam ser práticos. Do que adianta erudição de barriga vazia? É o narrador ou Fabiano quem pensa assim? “Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Esse é Fabiano quem pensa. Em outros momentos, o narrador chega a se expressar por Fabiano e nos dizer “era o que ele queria dizer”.
“Como podiam os homens guardar tantas palavras?” Fabiano se pergunta. Os patrões também se utilizam das palavras, se valem da ignorância. “Unico vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar: bastavam os gestos” ou grunhidos. Em dado momento, um dos filhos fica curioso sobre a origem da palavra “inferno”, afinal, como diz Hermenegildo Bastos, quem escreveu o pósfácio da edição, “não pôde resistir ao poder da palavra”, visto que a “linguagem [age] como a consciência imediata do homem”.
Os personagens parecem tentar escapar do presente, pois este é sofrimento; desejos, lembranças, sonhos, o passado e o futuro são suas formas de fuga, de se retirar. “Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?” E será mesmo que um dia foram felizes?
Sim, eles sofrem e o círculo representa essa repetição geracional que, provavelmente, se seguirá. Na edição que li, emprestada da biblioteca, uma frase estava escrita a lápis. Ela falava mais ou menos assim: “Por que um livro que exalta a miséria faz tanto sucesso? Deve ser fruto de um pensamento de quanto pior, melhor”. Quem escreveu não leu ou leu muito mal.
Representar a miséria, não significa exaltá-la, concordar com ela. Em geral, inserir qualquer tipo de personagem em narrativas, não significa defender um ponto de vista. Muitas vezes, eles são inseridos justamente pelo contrário, para que sejam criticados. A postura do narrador e de Graciliano é crítica, é uma literatura de denúncia, mas não por isso panfletária, pois é literária, tem preocupações formais.