João Pedro 20/03/2022As cores do caisLeitura que fiz para o ciclo de fevereiro do Clube Lendo Escritores Negros Brasileiros, “O crime do cais do Valongo”, de Eliana Alves Cruz, me transportou para o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, em uma experiência imersiva que há muito eu não vivenciava (de plano, eu me recordei de “Kindred”, de Octavia Butler, que teve esse mesmo efeito em mim). Já nas primeiras páginas eu me peguei completamente rendido à história, à escrita de Eliana Alves Cruz e às personagens, sobretudo as duas que narram o romance - Muana Lomuè, uma escrava de origem moçambicana, e Nuno Alcântara Moutinho, um mestiço ou mazombo, filho de portugueses nascido na colônia.
O cais do Valongo é um local que, assim como quase toda a história negra, sofreu apagamento histórico, inclusive desde a sua própria origem: o Valongo era uma região mais afastada na cidade do Rio de Janeiro, tendo sido ali escolhido para fugir da vista da elite branca a barbaridade da chegada dos tumbeiros. O cais foi um dos maiores portos escravagistas de toda a história humana, onde desembarcaram e foram comercializadas milhares de pessoas negras vindas da África, tendo sido posteriormente transformado no cais da Imperatriz, para a recepção da princesa Teresa Cristina, que viria a se casar com Dom Pedro II, e somente redescoberto em 2011, quando da realização de obras de revitalização do porto.
Apesar de ser panfletado como um romance de viés policial, o crime – no caso, o assassinato do comerciante Bernardo Lourenço Viana – fica em segundo plano. São as histórias das protagonistas e personagens pretas que, entrelaçadas ao evento criminoso, dão o tom da obra. A autora, a partir de notas reais extraídas da Gazeta do Rio de Janeiro na época, recria uma história ficcional que reverencia cultura e ancestralidade negras, levando ao centro do cais a cor preta que nunca deveria ter saído do foco.