spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
Principais pontos do livro "O Dom Criativo"
“Cristo não morreu simplesmente para tornar cristãs mais pessoas. Isso não basta; sua obra é grandiosa demais. Ele morreu para que pudéssemos ser humanos, vivendo e agindo de modo humano, como Deus originalmente nos fez para viver, em amor e liberdade”.
Sobre o livro de Apocalipse
Tudo isso é descrito numa linguagem de difícil compreensão para as pessoas do século vinte. A linguagem de João é simbólica, as imagens são tomadas da realidade natural a fim de descrever um nível de realidade além da visão ou entendimento humanos. O que João escreve acerca disso não são meros pensamentos ou fantasias.
Apocalipse parece de fato um livro obscuro, mas é menos obscuro para aqueles que conhecem os livros proféticos do Antigo Testamento e estão familiarizados com as profecias de Jesus sobre os acontecimentos por vir. Neste sentido, Apocalipse não é um livro novo, pois nada acrescenta à Bíblia que já não tenha sido mencionado alhures. Antes, é um lembrete de que muitas das coisas descritas pelos profetas ainda estão por acontecer, embora muitas profecias já se tenham cumprido na vida, morte e ressurreição de Cristo.
Apocalipse pode ser visto como uma grande coletânea de citações do Antigo Testamento, usando a mesma linguagem e as mesmas imagens. Mostra tudo em sua própria perspectiva: a história se desenvolve a partir do dia em que Cristo levantou-se dos mortos para mais tarde ascender aos céus, passa pelo presente e, então, chega ao Juízo Final.
A história não é uma “história agradável”. O próprio Jesus fala de guerras, fomes e terremotos por vir. Em Apocalipse somos informados de que ele virá em meio a todas essas coisas, acontecimentos que até nos reinos celestiais são descritos como “ais” (Apocalipse 8.13). Cristo está purificando o mundo, preparando-o para o dia em que todas as coisas, até mesmo a morte, submeter-se-ão ao domínio de Deus (1 Co 15.24 ss.), e a nova terra virá à existência.
A MÃO DE DEUS NA HISTÓRIA
No teatro da história, as pessoas não são nem marionetes nem expectadores passivos. Mesmo que tanto a vitória decisiva quanto o triunfo final tenham de ser atos de Deus, visto que a fraqueza e o pecado desqualificam os seres humanos de tal realização, ainda assim, depois da obra de libertação na encarnação, morte e ressurreição de seu Filho, Deus chama o povo à ação. Deus o convida a ajudar a preparar um novo mundo em que todas as coisas serão unificadas em Cristo (Efésios 1.10).
Poucas pessoas hoje levam a sério um acontecimento no início da história que tem afetado tudo desde então — a Queda. Seres humanos, tentados a ser como Deus, a ser seus próprios mestres, quebraram um mandamento básico de Deus e desencadearam uma série de eventos momentosos. A morte entrou no mundo. A criação, agora amaldiçoada por Deus, tornou-se sujeita à vaidade (Romanos 8.20). Como os cristãos estudam pouco as implicações desta maldição!
Toda a humanidade espera ser salva da maldição, do poder do mal, da vaidade do trabalho humano; aguardamos o cumprimento da promessa de que toda a criação um dia será purgada e liberta. Enquanto isso, as pessoas são chamadas a trabalhar. O mundo de Deus ainda está aí, e ainda é nossa responsabilidade cultivá-lo e guardá-lo (Gênesis 2.15). Também havemos de criar, dentro do escopo de nossa humanidade.1 Cabe aos seres humanos ativar e realizar, descobrir e moldar o potencial inerente do mundo.
Tudo isso porque, apesar da maldição, Deus também nos deu esperança. A “semente da mulher” haveria de vencer a serpente, Satanás.
Eva olhou para Caim neste dia: seria ele o redentor? Caim, ao contrário, mostrou-se um assassino. No entanto, Caim não foi simplesmente posto de lado, nem seu nascimento foi privado de humanidade. O mandato cultural, segundo o qual toda a humanidade haveria de desenvolver e utilizar este mundo, continua em vigor. Deus não cancelou seus planos nem sua criação; ele continua sua grande obra de restauração.
E, conquanto agora isso tenha de ser alcançado pelo modo difícil — sofrimento, dor e morte —, há também a restauração de Cristo, possibilitando a ressurreição de todos os que nele se tornaram novos homens (Romanos 6.8-11).
O TRABALHO HUMANO NA HISTÓRIA
Caim e Lameque
Caim e Lameque são ancestrais de todos aqueles que ao longo da história fazem as coisas à sua própria maneira, sem reverência ao Deus que os criou. Lemos sobre eles em Gênesis 4.17 ss. Nas atividades desses homens e de seus descendentes, logo encontramos um desdobramento: as pessoas descobrem possibilidades e dão-lhes uma forma específica. Esta abertura da cultura é a formação da história. Lemos sobre a invenção de um abrigo contra sol e chuva, sobre o início da pecuária, da música e do uso das ferramentas. As pessoas começam a ficar à vontade.
Lameque imediatamente começa a abusar dessas ferramentas. Ele se vangloria de suas armas. Deus dera proteção a Caim; mas Lameque gloriava-se de que podia fazê-las ainda melhor e usava a força para tomar para si mais de uma mulher. Já no início da história temos sexo e violência na linhagem de Caim e Lameque, assim como encontramos hoje descritos nos jornais, com histórias de crime e prostituição, ou nos livros, no teatro, no cinema e na arte — com a ressalva de que nossa era “iluminada” faz essas coisas com ainda mais intensidade que Lameque.
As pessoas acreditam que, com sua descendência, o progresso será alcançado. Tentam mudar os outros, seja pelas ideias, seja pela força, esperando o surgimento de um mundo melhor. Tentam mudar os sistemas humanos, só para constatar que tampouco esta é a solução. Conquanto em desespero, prosseguem. Guerras e revoluções, violência e repressão são os frutos da fé humana no progresso. Com grande frequência, idealistas sinceros são suplantados por aspirantes ao poder que abusam até mesmo das melhores coisas para atingir seus objetivos pessoais.
Entretanto, na busca do progresso, as pessoas desenvolvem técnicas e habilidades, criam cidades e obras de arte, pensam profundamente sobre a vida, escrevem livros, cantam canções e organizam seu mundo em todos os tipos de sistemas.
Em si mesmas, essas coisas não devem ser desdenhadas.
A Bíblia louva a beleza das cidades que são destruídas: Babilônia, Nínive, Tiro e Sidom. Veja a descrição da riqueza, da sabedoria e dos bens abundantes de Tiro em Ezequiel 27 e 28. Decerto não somos incentivados a olhar para tais realizações com desdém. Na verdade, a recomendação é que lamentemos porque elas se foram, destruídas
Por toda a história, muitas descobertas e técnicas — a “potencialidade aberta” — são transmitidas de geração em geração. Ainda empregamos muitas delas hoje. É o pecado que transforma essas coisas boas em maldição, quando são usadas para servir ao Moloque do progresso.
Revolução
Nunca antes na história houve uma crença tão difundida de que a revolução é positiva, de que, pela mudança violenta, pode-se produzir um novo mundo.
Revolucionários não podem esperar que as mudanças aconteçam gradualmente. Querem resultados imediatos, tentando alcançar a igualdade ao eliminar aqueles que se põem em seu caminho. Certamente concordaríamos com eles que todas as pessoas são iguais, mas o que temos em mente é a igualdade diante de Deus e perante a lei. Verdade e beleza também são o mesmo para todos. Revolucionários, no entanto, estendem essas verdades a uma exigência de que o poder deve ser dado às classes mais baixas a fim de que atinjam poder e riqueza iguais — igualdade em tudo. Para atingir seu ideal, estão preparados até mesmo a sacrificar a liberdade individual. Com muita frequência, isso tem significado que todos são igualmente reprimidos por um tirano ou ditador.
Revoluções são períodos infelizes, tempos de incerteza e anarquia em que mais se destrói do que se constrói. De certa forma, são uma doença da humanidade. Às vezes, são causadas pelos erros das classes dominantes, por um inaceitável abismo entre ricos e pobres e a repressão daqueles que são econômica e socialmente mais fracos. Durante períodos revolucionários, todos esperam pelo momento em que tudo será estabelecido e a vida voltará ao “normal”.
Depois da Revolução Francesa, por exemplo, mais poder foi dado às classes médias, e em geral a liberdade aumentou e a opressão diminuiu. Ninguém negaria que essas coisas foram positivas. Mas, como a Revolução também foi um tempo de terror, e depois de ditadura, essas mudanças benéficas foram quase interrompidas. Tais coisas acontecem porque os revolucionários não têm paciência para suportar o fardo ou esperar pela ação de Deus. Querem resultados imediatos.
Set e Enoque
Na linhagem de Set e Enoque, como na de Caim e Lameque, também encontramos desenvolvimento e mudança. Contudo, não há o sonho de produzir um mundo novo mediante a revolução ou o esforço humano. Os filhos de Deus são chamados, com o restante da humanidade, a trabalhar para o desenvolvimento e realização do potencial deste mundo. Mas recebem o entendimento adicional de que, no período entre a Queda e o retorno de Cristo, nenhum bem pode ser realizado sem ao mesmo tempo
levar em conta o pecado e suas consequências. Não podemos conquistar nada sem uma contínua batalha contra o mal. Cristãos são chamados a ser sal da terra, para preservar e dar sabor ao que é bom, a trazer um meio de cura onde as pessoas estão doentes e esgotadas.
Infelizmente, a igreja com frequência demais tem ignorado o sofrimento e a opressão do pobre e negligenciado seu chamado a ajudar os necessitados e doentes. Temos de trabalhar concretamente pela paz e pela liberdade.
Na linhagem de Set e Enoque, o Senhor enviou grandes homens para mostrar o caminho: Moisés, Elias, Davi, Daniel, os apóstolos, Agostinho, Lutero, Calvino e muitos outros. Também houve grandes cientistas e artistas.
A ciência também foi fruto do cristianismo, que via a natureza como separada do Deus que a criou e, portanto, aberta à exploração. E no século XVII, quando havia um consenso cristão, a arte no norte da Europa atingiu um ápice jamais superado.
A arte daquele século tem uma riqueza e um brilhantismo técnico ainda por ser plenamente investigado, muito embora nossos museus estejam cheios de “velhos mestres” e muitos livros já tenham sido dedicados a eles. As pessoas podem ser críticas de todas essas realizações, mas normalmente usam como régua a ética cristã e os padrões cristãos, demonstrando assim, paradoxalmente, a profundidade da influência cristã.
Como vimos, a linhagem de Set e Enoque não procura desenvolvimento e renovo; mas, diferentemente da outra linhagem da humanidade, percebe que essas coisas devem vir por meio de um crescimento natural.
Embora a linhagem de Caim e a linhagem de Set ajam de modo tão diferente, ambas estão trabalhando dentro do mesmo arcabouço da criação de Deus, rumo ao alvo de realizar seu potencial e, assim, fazer dela um lar para a humanidade e, enfim, vencer o mal e a maldição. Ambas as linhagens fazem parte da mesma humanidade com o mesmo chamado básico.
Renovação
Por enquanto, a obra de desenvolver e manter o mundo tem sido feita sobretudo por pessoas da linhagem de Caim e Lameque. Isso não quer dizer que a linhagem de Set e Enoque tem de eximir-se da participação no mundo, como ficará claro adiante. Entretanto, a tarefa especial da linhagem de Set e Enoque é ser “sal que salga” (Mateus 5.13, versão minha). O sal é usado para preservar, ou pelo menos para adiar a decomposição e a putrefação. Cristãos são chamados a mostrar com suas palavras e com a própria vida que Deus existe e que Cristo é seu Filho. Cristianismo sem sal será lançado fora.
Cristo não morreu simplesmente para tornar cristãs mais pessoas. Isso não basta; sua obra é grande demais. Ele morreu para que pudéssemos ser humanos, vivendo e agindo de modo humano, como Deus originalmente nos fez para viver, em amor e liberdade. Cristo não é só o Redentor dos cristãos, nem o guru daqueles que lhe seguem o culto, tampouco o Senhor de “nossa fé” — não devemos ter fé na fé —, mas ele veio redimir e restaurar toda a criação e ser seu supremo juiz.
Humildade é a palavra-chave. Poder, riquezas e grandeza não são fins na vida cristã; não são nem meios. Cristo é nosso exemplo: nasceu numa manjedoura, viveu cercado de pessoas humildes, cresceu num lugar distante dos centros culturais de seu tempo. Sua vida e obra foram da mesma qualidade, sacrifício e serviço — lavando os pés dos outros! Seu fim foi a morte na cruz. O que parecia fraqueza foi seu triunfo. Jamais devemos confundir humildade com fraqueza e passividade, pois nenhum fracote poderia ter denunciado os fariseus ou desafiado a hipocrisia, a corrupção e a desonestidade, como o fez Jesus.
GRAÇA COMUM
Realizações humanas são importantes, mesmo quando não são absolutas, e certamente fazem parte do plano divino de um grande futuro. A tarefa de sujeitar a terra e dominar sobre todas as criaturas (Gênesis 1.28; 9.1-2) tem sido levada a cabo, talvez apenas parcialmente — e apesar do pecado, da dor, do pranto e das lágrimas.
A pergunta que se faz, entretanto, é a seguinte: como é possível a um incrédulo, um não cristão, fazer obras que são boas em si mesmas (muito embora feitas por um pecador) e ao mesmo tempo aceitável a um cristão, que é um filho de Deus? Geralmente, responde-se levando em conta a “graça comum”, sugerindo que Deus dá um tipo especial de graça, graça em sentido geral, de modo que coisas boas são possíveis. Essa graça comum é claramente distinta da graça particular, por meio da qual o cristão recebe a salvação, o perdão dos pecados e o poder de fazer o bem.
Incrédulos não são demônios, desprovidos da possibilidade de fazer algum bem, ainda que sejam pecadores. Acima de tudo, são seres humanos que podem ou não ver que precisam de salvação. Decerto desejam um mundo bom e agradável, conquanto só tenham uma ideia distorcida do que isso significa.
Visto que incrédulos não aceitam Deus como seu salvador, e visto que querem fazer um mundo melhor com a própria força e sabedoria, podem aderir a crenças estranhas ou a um otimismo infundado.
Há uma profunda diferença entre cristãos e não cristãos, mas não devemos buscá-las no lugar errado. A diferença reside em última instância na atitude básica, na esperança e na compreensão que uma pessoa tem de sua tarefa. Mas quando vem a uma atividade específica qualquer, o cristão pode ser tolo e pecador e o descrente sábio e correto. Essencialmente, o cristão e o não cristão estão trilhando estradas totalmente diferentes, mas, como seres humanos, vivem no mesmo mundo criado e na mesma história, e suas diferenças podem ser menos preto no branco. Isso significa que podemos verdadeiramente comunicar-nos uns com os outros.
LIBERDADE E AUTORIDADE
Como é um sonho pensar que todas as pessoas são boas e estão trabalhando por objetivos idênticos, Deus, em sua sabedoria, deu-nos o Estado para punir os criminosos, preservar a segurança pública e preservar a justiça nas relações entre as pessoas. O mundo precisa de algum poder que tenha autoridade, como Paulo deixa claro (Romanos 13.l ss.)
Depois da lei de Moisés, o Novo Testamento trouxe mais mudanças ao longo da estrada para mais liberdade para mulheres. Hoje, no mundo ocidental, a monogamia é a lei. Em muitos países muçulmanos e alhures, onde as pessoas seguem os caminhos do Ocidente, as mulheres têm conquistado mais liberdade, mesmo quando o fim ainda não foi alcançado.
Entretanto, quando as mulheres tentam forçar o passo da emancipação de modo revolucionário, geralmente as coisas ficam piores. O movimento pela libertação das mulheres tem transformado os ganhos do passado, em que as mulheres gradualmente conseguiam mais igualdade, numa guerra dos sexos. Em vez da proximidade e unidade entre homens e mulheres, envolvendo um reconhecimento da maravilhosa diversidade que cada um recebeu pela criação, temos ódio. As mulheres começaram a agir de maneira feia e já não são elas mesmas por causa da imitação dos homens.
Hoje, à medida que o cristianismo pouco a pouco é posto de lado, vemos uma perda gradual desses valores que começaram a ser percebidos nas leis de Moisés. A posição das mulheres está ameaçada; o amor livre e a permissividade abundam e leis de divórcio mais simples estão levando a mais casamentos desfeitos. É a mulher quem mais sofrerá com tudo isso.
O mundo ainda precisa de autoridade e proteção. Injustiça e caos podem ser o resultado do excesso de igualdade. A família, por exemplo, é importante e também o é a regra de obediência aos pais! Que os novos métodos de ensino psicologicamente orientados digam outra coisa é uma das razões por que atualmente temos uma crise de autoridade no mundo. Por outro lado, devemos ter muito cuidado para que nossa visão de autoridade não degenere numa relação entre um senhor e seus escravos.
A ERA DO INSTANTÂNEO
Vivemos na era do instantâneo. Bradam os anúncios: “Tome este comprimido para alívio instantâneo”! A geração dos anos sessenta às vezes era chamada de a “nova geração”. Quando se chocavam contra um muro de realidade que não obedecia a seus caprichos, eles cediam à apatia, desesperando-se porque seus desejos não podiam ser atendidos imediatamente. Não tinham paciência, com certeza não a paciência de esperar no Senhor.
Cristãos também foram infectados por essa mentalidade. Temos todos os confortos, a vida é fácil, e todo desejo pode ser realizado — se pertencermos aos ricos felizes. Nossa economia tem feito de tudo para tornar a todos ricos, mais ricos do que os reis de outrora, cujos palácios não podiam competir em conforto com nossos bangalôs. Temos tudo isso. Mas nem tudo está em nossas mãos. Algumas coisas estão fora de nosso controle: boa saúde, um casamento feliz, um senso de realização. Então, invocamos ao Senhor e pedimos lhe que nos conceda essas coisas, como se ele fosse um mágico numa coleira — nossa coleira! Quantas vezes as pessoas me perguntam o que quero dizer com “resposta à oração”. Ao examinar os perguntadores, tenho percebido que geralmente estão buscando a realização imediata dos desejos além de seu poder. Também me perguntam com frequência o que quer dizer “temor do Senhor”. De fato pode haver falta de clareza na comunicação aqui, uma vez que a palavra “temor” neste sentido tornou-se obsoleta. Mas a pergunta também mostra que as pessoas hoje perderam a compreensão de um grande Deus Todo-Poderoso que merece nosso temor e tremor. Encontramos dificuldade para prostrar-nos diante do Deus supremo e dizer: “seja feita a tua vontade”. Não raro, fazemos do cristianismo um sistema de felicidade, garantindo o sucesso fácil, com Deus lá com seu poder para preencher as lacunas.
A TAREFA CRISTÃ
Cristãos devem aceitar as coisas boas feitas pela linhagem de Caim e Lameque.
A tarefa cristã não é mudar o mundo — por mais maravilhoso que este seria se conduzido por moral melhor, justiça melhor, melhor gestão dos recursos do mundo —, mas, sobretudo, guardar o mundo da decadência e da corrupção, do mal e da extinção.
Jamais devem abandonar seu dever, mas são chamados a seguir o exemplo de Cristo, mitigar ou combater os efeitos do mal. Neste sentido, cristãos são protestantes, mas seu protesto é feito em amor. É necessário sabedoria e amor para saber quando aceitar o menos que perfeito e quando em ir busca de algo melhor.
Cristãos não podem ser revolucionários. A Bíblia nos ensina a ser pacientes e a não tomar da espada. Embora haja exceções, elas devem ser muito fortes para justificar a violência.3 Cristãos não devem nem mesmo assassinar tiranos; pensem em Davi, que, apesar da oportunidade ímpar, recusou-se a matar Saul (1 Samuel 24). Tanto a Bíblia quanto a experiência ensinam que violência só gera mais violência. Cristãos devem ser pacificadores, embora não defendam uma “paz a todo custo”, que leva a mal e opressão.
Acima de tudo, nosso envolvimento no mundo implica perseverança. Se queremos trabalhar por uma mudança na direção correta, havemos de perceber que esta não pode ser feita por uma pessoa só, nem em poucos anos. É uma tarefa sem fim para todos os cristãos em todas as eras. Somente assim Deus pode usar-nos. Nosso trabalho não é vão, mesmo quando não temos esperança de ver os resultados num futuro próximo, e temos de esperar para ver o cumprimento mais tarde, talvez apenas na nova terra.
2 NOSSO CHAMADO NA CULTURA
Ao longo dos últimos séculos, adotou-se um uso restrito da palavra, restringindo-o às artes e ao mundo da erudição. Essa aplicação estreita tem origem no dualismo inerente de nossa cultura. De um lado, estão as forças poderosas da ciência e da tecnologia, que as pessoas hoje não consideram como cultura, mas simplesmente como vida e realidade. De outro lado, estão a erudição e as belas artes: música, poesia, pintura — interessantes, talvez, mas de pouca conconsequência real. (Talvez até a religião se inclua aqui.) A cultura então se torna apenas um adorno da vida — um ornamento, possivelmente um enfeite, mas nunca uma necessidade.
É difícil dizer o quanto o cristianismo tem reforçado essa ideia desde o século XVIII. Muitas vezes, ele tem visto o que hoje é chamado cultura como algo supérfluo ou até perigoso. Ao mesmo tempo, tem aceitado a ciência moderna e a tecnologia com grande ingenuidade como “território neutro”. Cristãos também têm deixado muito facilmente o campo da erudição e das belas artes quando constatam que aqui as forças da incredulidade são muito ativas, esquecendo-se de que é precisamente na linha de frente que se tem de combater o inimigo. Como consequência, em alguns desses campos, o cristianismo tem perdido quase toda influência — por exemplo, nas artes visuais — e ideias não cristãs têm encontrado uma liberdade de expressão quase inquestionada. Isso tem acontecido não só nas belas artes, na literatura e na filosofia, mas também no “entretenimento” — filmes, televisão e mídia de massa em geral. Portanto, a mentalidade, a visão de mundo e o estilo de vida não cristãos têm tido tal poder de influência que as pessoas hoje falam de viver numa “era pós-cristã”. Decerto a influência do cristianismo diminuiu.
Cristãos não devem desdenhar da participação na cultura. Pode soar piedoso dizer que o modo como cantamos não é importante, mas para mim é quase o mesmo que menosprezar a Deus. Se alguém o ama, não deve tentar cantar músicas belas com boas melodias? Ademais, cantar mal, por qualquer que seja a razão, também é cultura, ainda que apenas cultura pobre. Para cristãos, fazer uma dualidade na vida entre, de um lado, sua espiritualidade e fé e, do outro, a atividade “neutra”, mais ou menos cristã, da experiência diária, é empobrecer a existência. Nega a soberania de Deus sobre grande parte da vida da pessoa e cria uma dicotomia perigosa para nossa espiritualidade.
No início da era cristã, essa atitude levou ao surgimento dos monastérios. Na tentativa de salvar-se do “mundo”, a igreja evitou toda atividade cultural. Isso pode explicar por que demorou tanto para que as massas de “leigos” fossem adequadamente educadas e o mundo grosseiro da Idade das Trevas fosse substituído por algo mais belo e refinado. Talvez tenha sido precisamente por causa deste dualismo na mentalidade dos cristãos que a nova cultura não eclesiástica — o Renascimento — que emergiu no final da Idade Média era tão secularizada.
A comunidade cristã jamais deve comportar-se como “uma panelinha” ou um “grupo fechado”. Ela não deve orgulhar-se de seu estilo de vida, de suas formas de culto, de seu modo de falar ou cantar, pois não cristãos podem vê-las como esquisitas, antiquadas e talvez até incompreensíveis. Ao contrário, os cristãos deveriam sempre estar abertos para o mundo a seu redor e manter contato com seus contemporâneos. A igreja jamais deveria ser uma comunidade fechada, retirada do mundo; afinal, a marca do mundo sempre estará nela e pode até mesmo manifestar-se no pecado do orgulho!
A questão do lugar do cristão num mundo não cristão é muito diferente da questão da atitude do cristão perante a vida criativa. No segundo caso, a única pergunta legítima é como pode ser feita? Como podemos expressar criativamente nossa fé, nossas esperanças e princípios, nossa perspectiva de vida? Como o Senhor quer que trabalhemos, pensemos, criemos e vivamos?
Nossa atitude para com a cultura como tal não deve se confundir com nossa atitude para com a cultura não cristã ou anticristã. Cristãos devem reconhecer sua tarefa de “sal que salga” (Mateus 5.13), não de abster-se da cultura, mas de tentar purificá-la ou pelo menos preservá-la da decadência. Ou seja, se pudermos e se Deus e o mundo ao nosso redor permitirem
A Bíblia não contém uma crítica da cultura desse tipo. Salomão empregou pessoas do mundo pagão para ajudar a construir o templo. Talvez isso pudesse ser feito em nossos dias. O povo de Deus, contudo, sempre será exortado a não seguir os deuses pagãos ou cair nas práticas religiosas pagãs. Uma cultura torna-se não cristã quando os deuses errados são reverenciados e servidos. Hoje, os deuses são o prazer, o sexo, o poder e o dinheiro: é este o Moloque que Allen Ginsberg denunciou com poder e precisão em seu poema “Howl” [Uivo].
A divisa é: “Cuidado! Não corra o risco, como Ló, a quem Deus teve de tirar da cidade perversa de Sodoma. Não tome parte de suas atividades, não se prostre diante da besta, não imite seus modos pecaminosos”. Aqui está a verdadeira antítese: não entre cultura e cristianismo, mas entre a idolatria pecaminosa deste mundo e a obediência amorosa às leis de Deus.
“Saia” não quer dizer que devemos afastar-nos deste mundo, entregando-o à própria sorte. A Bíblia convoca o povo de Deus a cuidar, a ajudar, a importar-se; somos lembrados disso na história do bom Samaritano.
A oração de Jesus por seus seguidores também foi bem clara em suas intenções: “Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal” (João 17.15). Mais tarde ele se refere mais uma vez ao estilo de vida deles e pede: “que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (versículo 23). Viver como Cristo orou devia ser nosso testemunho mais poderoso e convincente.
JÁ NO PRESENTE
Disse Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do Evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna. Porém muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros”.
Aqui Jesus explica concretamente que mesmo nesta vida, casas, terras, etc., por sua causa, estão reservados para aqueles que creem nele, desde que primeiro renunciem a tudo por Cristo. A tragédia do asceta foi que ele não leu as palavras “já no presente”, ou negligenciou-as, porque deixou de compreender que Jesus restaura as coisas deste mundo para nós se tão somente uma vez abrirmos mão delas por causa dele.
Como nos lembra Mateus 7.13-14, há dois caminhos. Um estreito, que leva à vida; o outro tem uma porta larga e de fácil entrada, mas leva à perdição. A estreiteza da porta não quer dizer que o Evangelho não esteja aberto a todos. A porta é estreita porque, quando passamos por ela, temos de deixar para trás nosso orgulho, nossa autossuficiência, nossa autonomia.
NÃO TEMAS
A Bíblia nos diz que Deus está agindo na história, e que o sofrimento é parte da maldição. Mas o juízo não é trabalho nosso. Devemos simplesmente ajudar, e explicar a verdade de modo profético.
Hoje, a comunidade cristã tem um lugar especial em meio às adversidades, quando os quatro cavaleiros de Apocalipse 6 passam pela terra trazendo fome, guerra e morte. Não precisamos temer, pois assim como os israelitas cujas casas foram seladas com sangue sobre os umbrais na saída do Egito, também fomos selados (Apocalipse 7). O Senhor conhece os que são seus. Na linda história de Jeremias 45, Baruque, o secretário do profeta, olha com pavor para o futuro; mas o Senhor tem uma mensagem especial para ele: conquanto o juízo esteja vindo, Deus protegerá Baruque.
Enquanto isso, temos de “Buscar a justiça, buscar a retidão” (Sofonias 2.3), agindo com integridade, obedecendo aos mandamentos de Deus e sem comprometer-nos com o modo de vida do mundo. Não há espaço para a pretensão de que possamos mudar a história ou até salvar a nós mesmos; nosso envolvimento na cultura não deve ser com a ideia de que Deus precisa da assistência de nossos grandes feitos. A humildade implica buscar nele abrigo no dia da adversidade, como sugere Sofonias. Suas palavras são quase as mesmas que as de Cristo: buscar primeiro o reino de Deus, e as demais coisas serão acrescentadas.
3 Criatividade em amor e liberdade
Vimos que é importante pensar diretamente a partir de uma visão bíblica do mundo e da vida sobre nosso trabalho, nossas capacidades criativas e nossa vida como seres humanos, a começar pelo reconhecimento de nossa necessidade de Deus. Agora vamos examinar especificamente a criatividade, ou seja, como podemos, com nossa personalidade e com a liberdade dada por Deus, ajudar a moldar a realidade e como isso leva à cultura.
Separada do legislador, a lei torna-se mortalmente tirânica. A norma, a Lei cujo propósito é levar à vida, pode, em dada forma concreta, tornar-se uma exigência terrível pela qual o homem enfim é desumanizado e se torna uma coisa “sob a lei”. As pessoas tornam-se escravas dos próprios sistemas que construíram (geralmente com a melhor das intenções) para fazer tudo funcionar harmoniosamente e ser da máxima utilidade para elas. Vemos isso concretamente em nossa cultura desde o Iluminismo, quando as pessoas foram reduzidas a “engrenagens de uma máquina”; também vemos isso nos sistemas políticos ditatoriais da atualidade, que reduzem as pessoas a instrumentos do Estado.
Separada de Cristo, a norma torna-se uma fonte de frustração, um estorvo. Isso acontece quando o relacionamento com um Deus pessoal é substituído pela idolatria; uma pessoa que não reconhece um Criador transcendente tem de escolher para o lugar dele algo imanente, algo pertencente à ordem criada. Tudo, então, se torna relacionado a este deus e, uma vez que as pessoas não podem mudar a estrutura real da criação, tudo é distorcido.
Cristo o Redentor
Deste estado de miséria, descrito na Bíblia e observável na experiência humana, Cristo pode redimir a humanidade. Ele pode libertar os homens da morte, da alienação e do pecado. Ser redimido em Cristo não é só uma experiência subjetiva, um “salto no escuro”. É uma condição descrita por palavras profundas do Antigo Testamento, citadas por Paulo na epístola aos romanos: “O justo viverá pela fé”. Essas palavras têm relevância concreta em nossas vidas. Ser “justo” quer dizer (entre outras coisas) estar num relacionamento correto com as leis estruturais de nossa realidade. “Fé” quer dizer estar fundado em Cristo e voltado para Deus. “Viver” quer dizer encontrar-se em liberdade, abertura e amor, respondendo à norma com compreensão em vez de ser subjugado pela lei e coagido a obedecê-la.
Vida
A vida é mais do que o batimento cardíaco, mais do que ser capaz de mover-se de um lado a outro e de observar as coisas. Em contrapartida, podemos compreender algo do que a vida significa quando pensamos na expressão “viver uma vida de cão”. Uma pessoa pode estar biologicamente viva, mas ter uma existência inteiramente sombria. Isso nunca foi mais bem expresso do que quando um jovem hippie perguntou: “Existe vida antes da morte?” É típico do conflito que as pessoas modernas enfrentam: querem viver, mas rejeitam o fundamento da vida. Anelam por vida e tentam encontrá-la na aventura, no sexo (chamado “sexo livre”), na anarquia, mas tudo que encontram é morte. Eis a tragédia de nosso tempo.
A vida antes da morte só pode começar com o novo nascimento em Cristo. Só ele pode restaurar as pessoas a um relacionamento significativo com a realidade. Ele lhes dá o poder e o desejo de fazer o que é certo, de agir em amor e liberdade.
Amor
Definir amor é difícil, se não impossível, pois nos afeta muito intimamente para ser resumido em poucas palavras ou frases. No entanto, como seres humanos, de fato reconhecemos, experimentamos e, em alguma medida, compreendemos o amor.
Geralmente, observamos o amor apenas em formas muito intensas, como o crescimento da paixão entre um homem e uma mulher, uma resposta de deleite a algo belo no mundo, ou o espanto de novos convertidos quando descobrem o que Deus fez por eles. Amiúde deixamos de perceber o pleno significado do amor até que estejamos sem ele e a vida se torne fria e feia.
Paulo deu-nos algumas observações penetrantes sobre a ausência de amor em 1 Coríntios 13: se não há amor, toda sabedoria, justiça, pureza e verdade correspondem a nada. Tornam-se ruído, som inútil, destituído de sentido. Paulo escreveu essas palavras como uma advertência a cristãos que dariam a impressão de que enquanto a doutrina é sólida, tudo está certo. É aqui que tantas pessoas da igreja falham; parecem temer o amor como marca de fraqueza.
Quando isso acontece, fica claro quão pouco compreenderam a natureza do amor. Pois se seu amor não se expressa na forma de benignidade, paciência, consideração pelos outros, mansidão e perseverança (as marcas do amor cristão segundo 1 Coríntios 13.4-6, Gálatas 5.22, e 2 Pedro 1.5-7), então toda a sua justiça é vazia, seu esforço pela igreja é estéril e sua pureza doutrinária é inútil. O reino de Deus jamais poderá ser construído assim.
Liberdade
Liberdade é um fruto do Espírito. Isso quer dizer que somos livres diante de Deus. Como Jesus, podemos chamá-lo de “Pai”. João fala de nossa “confiança diante de Deus”, que quer dizer um relacionamento aberto e direto, sem temor (1 João 3.21). Embora nossa liberdade não deva confundir-se com presunção e atrevimento, podemos postar-nos em amor e confiança diante de um Deus pessoal. Não importa o quanto alguns cristãos infelizmente o tenham considerado, Deus não é um Fado, um fantasma ou um espectador sádico esperando ansiosamente para punir cada uma de nossas faltas. A Bíblia espera que o vejamos como um Pai amado, a quem consideramos com reverência e temor, e a quem tentamos não ofender.
Se fundamos nossa vida em Cristo e estamos livres diante de Deus, também estamos livres diante de nós mesmos. Não precisamos temer ser quem somos, pois Cristo nos aceitou como somos, com nossa própria personalidade. Estamos livres para desenvolver nossa própria individualidade. Frustração e automortificação não pertencem ao Evangelho, como Paulo indica em Colossenses 2.16-23. Contudo, realização pessoal também não é o alvo dos nascidos de novo em Cristo; para eles, a vida é tanto uma dádiva quanto uma tarefa endereçada a cada um individualmente.
Liberdade perante o mundo é outro privilégio do cristão. Cristãos podem sofrer no mundo, porque o mundo também fez Cristo sofrer (1 Pedro 4.12-16); mas Jesus disse que não devemos temer o mundo, que pode matar o corpo, mas não a alma (Mateus 10.28).
Como seus servos, podemos realizar a nossa tarefa, mas não precisamos preocupar-nos como se o destino do mundo dependesse de nossas ações. Essa confiança em Deus liberta-nos da necessidade de calcular e determinar tudo por nós mesmos.
Porque Deus quer trabalhar por intermédio de nossa fraqueza (veja 1 Coríntios 2.1-5, e os versos precedentes) e tem se empenhado em responder nossas orações liberalmente, nós, como seus filhos, estamos livres para trabalhar sem pressão, sem medo, sem complexos de superioridade ou inferioridade. Não estamos sozinhos, não dependemos de nossas boas obras para ganhar um lugar no céu.
Só Deus pode dar ao povo a liberdade que estamos descrevendo e capacitar seus filhos a viver unidos nesta liberdade. Ele os mantém e protege — e até mesmo aumenta-lhes o número. Cristãos podem pregar o Evangelho, mas é Deus quem chama as pessoas para si. Os filhos de Deus podem admoestar e suportar uns aos outros, mas é Deus quem mantém sua igreja. É desastroso quando aqueles que pensam que sabem mais tentam manter a igreja por si mesmos, como o ministro que escreveu a seu amigo: “As coisas vão bem aqui; a igreja está se tornando mais pura, ainda que cada vez menos pessoas venham aos cultos”. Há quem lembre a figura do Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov de Dostoievski: os líderes da igreja corrigiram os equívocos de Cristo, que era idealista demais! Em todas as eras, este modo de pensar perverteu a igreja — igualmente as igrejas católica romana, ortodoxa oriental e protestante.
Quanta luta religiosa teria sido evitada se os cristãos tivessem compreendido que é tarefa sua ser benigno, paciente, manso, humilde, considerando os outros melhores que a si mesmos. Embora o povo da igreja possa ter suas responsabilidades, todo o juízo final está reservado para Deus (Romanos 12.19).
O campo de batalha cristão
A vinda de Cristo ao mundo trouxe de volta a possibilidade de vida, amor e liberdade, mas estes não hão de ser vividos sem luta. O cristão deve travar a guerra em dois fronts importantes, o primeiro dos quais está dentro dele mesmo. O pecado está em nossos ossos; tenta atrair-nos de volta para a autodeterminação, autoproteção e autossuficiência. Tenta afastar-nos de Deus e tenta fazer-nos não usar seus dons nem acreditar na promessa de que ele responderá às nossas orações.
Mas o pecado também está fora de nós, no mundo, onde os efeitos da Queda ainda são uma dura realidade. Os cristãos, portanto, devem lutar contra a miséria e a imperfeição a seu redor — injustiça, falsidade, corrupção —, coisas que retiram a liberdade humana e põem as pessoas numa jaula de medo, frustração e culpa.
Inspiração
A criatividade em nenhum sentido específico vem por si mesma. A inspiração é necessária. Atualmente, a velha concepção de inspiração como influência espiritual externa à pessoa foi abandonada por completo. Ainda que a palavra às vezes seja usada, seu verdadeiro sentido é negado. Ela tende a ser empregada para indicar certa condição física durante o ato de criação, quando, por exemplo, tudo vai bem, e o artista é capaz de se concentrar. Mas a ideia de que pode haver alguma influência externa sobre a pessoa não é levada em conta de jeito nenhum.
Sem inspiração, a criatividade torna-se uma busca contínua de algo novo, sem nenhuma preocupação em fazer uma contribuição real à humanidade e às condições de vida neste mundo. Em sua criatividade, as pessoas podem ser inspiradas pelo Espírito Santo, como no caso de Bezalel; na verdade, o Espírito de Deus é necessário para produzir o que é verdadeiramente belo ou positivo. No entanto, Deus também pode dar o Espírito a não crentes, inspirá-los em sua criatividade. Este dom nunca vem automaticamente, embora para o não crente venha de modo involuntário. Vem porque Deus considera algo necessário à criação, ao bem de homens, mulheres, crianças e animais (veja Jonas 4.11). O último pode não pertencer ao seu povo no sentido mais limitado, mas pertence à criação.
Muita criatividade também se dá sem a orientação do Espírito, sobretudo nesses dias em que as pessoas preferem emancipar-se de Deus. Querem fazer as coisas por si mesmas e julgam a ideia de poderes e forças exteriores à subjetividade humana uma superstição inadequada. Mas, sem Deus, sem Cristo, sem o Espírito, nosso trabalho carece de propósito. Torna-se vago e frio. Pode-se ver isso na autobiografia de Darwin, na qual ele descreve como, quando jovem, amava música e poesia, mas que já não as suporta mais. Até a apreciação da beleza natural é quase inteiramente perdida por ele. “Minha mente parece ter-se tornado um tipo de máquina de produzir leis gerais a partir de grandes coleções de fatos.”5 Ele observa que a perda de seu gosto por arte afetou sua felicidade e decerto enfraqueceu sua vida emocional.
Sem a influência do Espírito de Deus, as pessoas têm de fiar-se na própria subjetividade para obter a força criativa. Geralmente, tentam alcançar isso pela transgressão de todas as fronteiras intelectuais e morais, dando livre curso a suas paixões, talvez usando bebida ou drogas para estimular a subjetividade.
Liberdade artística
Mesmo que se admita a presença da inspiração, não há criatividade sem liberdade. Se as pessoas sempre têm de perguntar “O que os outros vão pensar?” ou “Será que levei isso ou aquilo em consideração?”, nunca realizam nada, pois estarão confiando em leis e regras feitas por terceiros e não naquelas que pertencem intrinsecamente àquilo que estão criando, o conteúdo já presente na criação de Deus. A pessoa que seria criativa deve ser livre do pensamento legalista; como, por exemplo, alguém pode compor canções em um ambiente em que tudo, com exceção de hinos sacros, é considerado mau?
Quem deseja criar há de ser livre da tirania do passado, do presente e do futuro. Essa pessoa não pode fazer as coisas só por causa da tradição, embora possa trabalhar segundo as tradições ou até preservá-las. Também não pode ser escrava da moda atual, embora possa apreciar suas contribuições. Tampouco deve preocupar-se apenas com a importância futura da obra, com a criatividade sufocada por uma busca vã da glória.
Embora uma obra de arte venha à existência numa situação contemporânea, e talvez feita com um propósito determinado, não deve ser forçada numa estrutura imposta. Os artistas devem ser livres para realizar sua incumbência à sua maneira, com seu próprio estilo. Uma pessoa que faz uma encomenda pode pedir uma peça musical de certa duração, um livro sobre determinado assunto ou um painel de decoração de um tamanho específico. Essas exigências pertencem estritamente à encomenda e podem desafiar o artista a encontrar soluções corretas. Como tais, não retiram a liberdade do artista.
Entretanto, jamais se deve pedir que artistas cumpram normas que considerem inteiramente alheias e que estejam fora do escopo de dada encomenda, como, por exemplo, “um romance cristão deve sempre ter um final feliz” ou “um cristão só deve escrever poesia sacra”. Se o grupo ao qual um artista ou qualquer pessoa criativa pertence é crítico, seu talento será reprimido ou até mesmo esse artista será forçado a deixar seu ambiente natal.
Basicamente, deve-se ser livre para fazer o que é correto. A liberdade cristã não é a liberdade de algo, mas a liberdade para fazer algo. Significa abertura, liberdade de movimento, investigação e aventura mental.
Responsabilidade
A liberdade que vimos descrevendo jamais pode existir apartada do amor. Nunca criamos de modo meramente individualista, no vácuo. Amor quer dizer que temos a responsabilidade, como servos de Deus, de dirigir nossa criatividade em favor de outrem.
4 AUTORIDADE E PERMISSIVIDADE
O mundo em que vivemos está em rápida transformação. As estruturas da sociedade têm sido radicalmente criticadas, e muitas coisas têm sido rejeitadas. A exigência é de uma nova sociedade, caracterizada pela permissividade, que é o que a maioria das pessoas entende pela palavra “liberdade” hoje.
A visão básica do mundo que encontramos na Bíblia, incluía normas, leis que eram universalmente válidas. Havia uma diferença entre bem e mal. Havia ordem, havia estruturas, havia valores absolutos. E porque havia essas estruturas também havia autoridade, uma autoridade universalmente aceita. Essa autoridade baseava-se numa norma que era tão aplicável à pessoa em posição de autoridade quanto à pessoa sujeita a ela. Isso queria dizer que aquele que ocupava uma posição de autoridade não detinha o poder como resultado de qualidades pessoais; todo governante, gostasse disso ou não, exercia o governo pela graça de Deus. Toda a sociedade estava baseada no que Paulo disse em Romanos 13 acerca da obediência ao governo, pois “não há autoridade que não tenha sido estabelecida por Deus”.
Entretanto, uma nova atitude começou a aparecer em vários círculos humanistas, uma atitude que se tornou mais notável conforme progredia o século XVII. No século seguinte, essa nova filosofia materializou-se como o Iluminismo.
O Iluminismo
Com o Iluminismo, a velha visão de mundo desapareceu. O Deus que fora reconhecido como o ápice de todas as coisas desapareceu. Se ele — cujo nome havia sido inteiramente esvaziado de sentido pelos deístas — realmente existia ou não era de somenos importância. Já não havia mais necessidade dele. Deus foi retirado do mundo, e com ele também se foram os anjos e os demônios. Com ele desvaneceram também as normas que ele estabelecera, e que só tinham potência e validade por causa de sua existência.
Desde o Iluminismo as pessoas têm-se tornado autônomas. Ninguém tem autoridade sobre elas; são livres. Há mais a ser dito, no entanto. Essa liberdade tem um preço. As normas fixas se foram. Onde se encontrarão certeza e segurança? Somente a subjetividade permaneceu. Como se saberá quando algo é verdadeiro? Qual é o padrão, se é que há algum? A humanidade, sozinha e isolada, deve tentar com a própria força resolver os problemas da existência, encontrar o sentido em uma vida em que as coisas perderam a estrutura.
Se não há normas, então obviamente já não se podem usar palavras como “pecado”. As ciências sociais reduziram o mal e o pecado a estruturas ambientais e sociais. O mal certamente não pode ser metafísico, pode? As estruturas terão de ser mudadas. Mas quem tem de fazer isso? Obviamente isso é dever do Estado. O Estado tem de propor as respostas. O Estado deve atentar para a economia e para a prosperidade geral. Deve incentivar e promover o bem estar dos cidadãos.
O esfriamento do amor
Nossa vida, então, tornou-se atomizada. Isso também explica o crescimento da taxa de criminalidade, violência e assassinato que são uma consequência direta de um declínio do respeito à lei. As fronteiras entre a sociedade e o submundo tornaram-se turvas, um processo que tem sido acelerado pela presença do “Underground”,1 o assunto de muito da literatura moderna. A perda das normas também leva a um aumento da dureza da vida. Hoje, não se permite que oficiais cometam erros; se o fazem, são alvo de uma saraivada de críticas ou campanhas de ódio.
Pela mídia de massa, somos cada vez mais confrontados com o mal. A bondade se foi. Onde está o amor que vence o mal? Mateus 24.12 diz:
“E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos”. É esta a ordem em que está escrito, e é esta a ordem em que o vemos acontecer em nossa sociedade.
Muito do que vemos acontecer diante de nossos olhos neste momento, toda a corrente rumo a uma sociedade em que todos “atingem a maturidade” e são capazes de decidir por si mesmos o que fazer ou não, também podemos encontrar discutido em 2 Timóteo 3 e 2 Tessalonicenses 1. Vemos ali que questões sexuais são discutidas com muita ênfase, às vezes até demais em minha opinião. Entretanto, se achamos os primeiros versículos de 2 Timóteo 3 exagerados, temos de perguntar se nós mesmos não fomos infectados por este espírito de permissividade. Não devemos esquecer que as cartas do Novo Testamento também se dirigiram a pessoas que tinham “alcançado a maturidade”. Repetidas vezes aponta-se que, porque os cristãos são livres, eles não estão limitados por nenhum tipo de regra e norma. Cristãos maduros são conduzidos pela lei do amor, por um sentimento de responsabilidade pelo próximo.
A burguesia
Uma pergunta feita com frequência é: por que tudo isso está acontecendo exatamente agora? Por que, tanto tempo depois do Iluminismo, a “revolução cultural” está em curso no presente? A resposta a essa pergunta deve ser buscada no passado. A revolução que vemos agora é, na verdade, uma reação contra a burguesia. A burguesia, que ascendeu pouco depois do Iluminismo, em grande medida foi convencida pelos filósofos de que poderíamos seguir sem Deus em nossa visão de mundo.
O que fazer diante disso?
No nível pessoal, temos de compreender que, como cristãos, somos uma minoria neste mundo e já não podemos — como outrora — influenciar de modo decisivo as regras do Estado. Temos de aceitar nossa sociedade pluralista como é. O apóstolo Pedro diz-nos como viver como uma minoria pequena num mundo não cristão, pouco cristão ou anticristão. Em 1 Pedro 3.13 ss., ele esclarece nossa posição quanto à autoridade, incluindo a autoridade não cristã. E diz claramente que os cristãos podem ter de sofrer por causa da justiça.
No nível organizacional, onde cada um de nós tem o próprio lugar, devemos simplesmente fazer o que podemos: ser sal que salga. O que não somos chamados a fazer é defender o establishment como tal; de fato, muitos aspectos dele podem ser atacados, e com razão. Geralmente, há muito humanismo nas formas da sociedade que alguns cristãos tão sinceramente defendem.
O que também não somos chamados a fazer é apegar-nos a todos os tipos de regras e regulações como fins em si mesmos. Legalismo não é uma virtude cristã. O cristianismo não é uma moralidade; não é algo estático, mas algo vital e dinâmico. Quer dizer vida com Cristo, vida nova, humanidade nova. Como cristãos, temos de ter a mentalidade das bem-aventuranças. Devemos ter fome e sede de justiça e nunca ceder. Quando possível, temos de tentar exercer influência positiva em nossa sociedade pluralista. E jamais devemos buscar os frutos da fé onde não há fé.
A ira de Deus
Quando Deus se esconde e deixa as pessoas por algum tempo seguirem o próprio caminho, isso é ainda pior. O Deus que se oculta é um Deus irado (Salmos 89.46; Isaías 57.17). Nessa situação, permite-se momentaneamente que o pecado siga sem punição, mas a bênção de Deus é retida.
O Senhor mesmo ardeu de ira contra a morte diante do túmulo de Lázaro; sua ira acendeu-se novamente contra a desonestidade e a ganância, quando ele expulsou os cambistas do templo. Jesus nos adverte de que enfrentaremos lutas e perigos, e nenhures ele promete uma paz piegas. Ele é movido por compaixão pela multidão — necessitados, marginalizados, ignorantes.
Embora o mal, o pecado e o juízo sejam realidade, há lugar para o amor e para a beleza. Embora possa parecer que os maus prosperam, devemos considerar seu fim (Salmos 73.17-20). E se Deus não manda juízo, isto se dá para que as pessoas se arrependam e compreendam a vontade dele (Ezequiel 6.10; Apocalipse 9.20,21).
Nossa tarefa é amar nosso próximo como a nós mesmos; não pagar o mal com o mal, mas pensar no que é honesto, digno e nobre à vista de todos; e buscar a paz (Romanos 12.17,18). Temos de deixar o caminho aberto para a ira de Deus, sem a tomar em nossas próprias mãos (Romanos 12.19).
Possivelmente, o pecado e o erro mais profundo de Buñuel e de outros anarquistas seja o fato de quererem eles mesmos eliminar o mal, afastá-lo mediante o terror. Odeiam seus semelhantes humanos, em vez de amá-los em sua fraqueza e ajudá-los em direção ao que é bom. Ter fome e sede de justiça quer dizer promover a bondade e a justiça, não espezinhar nosso próximo com ódio.
Sobre a cultura
Toda cultura é fruto da atividade humana. As pessoas são movidas por motivos enraizados em seu coração para moldar a vida com base no modo como a entendem. Na linhagem de Caim, a cultura será o fruto da incredulidade; na linhagem de Set, será o fruto da fé. A incredulidade produz todos os terrores — pecado, ódio, morte — que encontramos resumidos em Romanos 1 (veja também 5.15-16). Ainda assim, porque as pessoas continuam seres humanos, não podem jamais chegar ao limite extremo. Nem Sartre nem Buñuel podem levar a vida que pregam. O próprio Buñuel não pode nem mesmo tolerar a morte de um animal. O que é então que o impede de romper com suas ideias ímpias e aceitar a realidade? A resposta é simples: ele está preso no pecado. Temos de perceber que as palavras de Paulo que dizem que em Cristo pode-se ser liberto da lei do pecado e da morte (Romanos 8.2) são verdadeiras não apenas no púlpito, mas na totalidade da vida e, portanto, também para questões culturais. Líderes artísticos precisam da libertação em Cristo como qualquer pessoa.
A construção da cultura ocidental
Olhemos primeiro em nosso mundo ocidental, o mundo em que temos de viver e consideremos o fruto da Reforma em nossa cultura ocidental. Como um dos frutos, certamente temos de mencionar a Contrarreforma — o renovo e purificação da Igreja Católica Romana. Um segundo fruto seria o estímulo ao humanismo, que, embora afirme suas raízes na antiguidade clássica, foi em essência um pouco diferente. Um terceiro fruto foi a renovação nas esferas moral e social depois das restrições da Idade Média. Um quarto fruto foi a liberdade artística que veio quando a arte tornou-se livre da igreja, e os artistas ficaram livres para descobrir novas fronteiras em seu trabalho.
Foi durante este período que nossa cultura ocidental como a conhecemos foi construída, uma cultura que, longe de perfeita, foi também um fruto da fé. Claro, as pessoas eram pecadoras naqueles dias, mas pelo menos havia um consenso, uma concordância geral acerca de normas e moralidade e uma compreensão da realidade como raramente se demonstrou na história. Havia riqueza, abertura e liberdade, fundada na realidade dada por Deus na criação e, portanto, nem sectária nem privada. Tragicamente, cedo demais o mundo da Contrarreforma foi maculado pelo absolutismo e pela temível inquisição, e a liberdade foi destruída.
Enquanto isso, o humanismo estava empenhado em aprofundar seus fundamentos e sustentava suas tentativas de reformar o mundo com teorias como as de Descartes. No século XVIII, o propósito cultural e humanístico do Iluminismo encontrou pouca resistência da Cristandade, enfraquecida como estava pelo misticismo e pelo tradicionalismo, bem como pelo absolutismo corrupto com o qual a Igreja Católica Romana tentou manter seu posto ao lado do poder secular das monarquias.
A influência cultural do Iluminismo originava-se na declaração dos humanistas de que já não precisam de Deus. Só muito gradualmente as consequências desta nova mentalidade foram percebidas. Primeiro, todo o consenso estrutural da cultura ocidental como se desenvolvera durante os séculos precedentes teve de ser quebrado, um processo que aconteceu tão devagar que não está completo até hoje. Contudo, agora podemos ver de modo cada vez mais claro, particularmente na arte e na filosofia, os frutos desta nova tendência baseada na convicção de que Deus está morto e de que as pessoas estão livres para edificar em seu próprio esforço.
Liberdade
temendo que a liberdade seja abusada, a igreja tem tentado amarrar os cristãos a novas leis. Os cristãos têm recuado do apelo apaixonado de Paulo a viver a partir da liberdade em Cristo, dizendo: “Nunca sabemos como as coisas podem terminar”. Este legalismo é o ponto mais fraco do cristianismo moderno, uma prova contundente de que as leis de Deus são mais sábias que as humanas. E é exatamente aqui que o mundo, incluindo Buñuel, ataca a igreja com mais violência. A liberdade cristã não é anarquia, mas é abertura, o direito a perceber toda a potencialidade de nosso talento. Paulo dedica a vida a defender essa liberdade — ele a sentia como fundamento do cristianismo que pregava — e isso em si mesmo prova que até naqueles dias as pessoas achavam difícil viver pela fé na obra consumada de Cristo e pela confiança em Deus. As pessoas nunca querem se arriscar, e os líderes cristãos com a melhor das intenções repetidamente tendem a substituir a liberdade pelo legalismo. Há fariseus em todas as eras.
Artistas cristãos não devem ser enganados pelo espírito da época com sua anarquista falta de liberdade. Devem examinar tudo e reter o que é bom (1 Tessalonicenses 5.21). Isso os levará, talvez involuntariamente, a funcionar como sal, inspirando outros a desenvolver o pleno significado de sua verdadeira humanidade, sem a limitação de uma filosofia ou teoria estreita. Sempre foi a tarefa dos cristãos desmascarar os falsos deuses ou falsos ideais e reabrir a vista para a plenitude da realidade.
Isso não é um convite a olhar nostalgicamente para alguma era de ouro do passado. Ao contrário, devemos ter nossos olhos voltados ao futuro na esperança de uma visão nova, revigorada. Devemos tomar cuidado com o tradicionalismo e, em lugar dele, aceitar nossa responsabilidade perante o futuro com base numa fé viva.
A ARTE PRECISA DE JUSTIFICATIVA?
Em algum lugar entre a Idade Média e nossa época, a arte tornou-se Arte. As artes visuais sempre foram compreendidas como um ofício, ainda que um ofício muito especial. No século XV, entretanto, e especialmente desde Giotto di Bondone, a posição da arte começou a mudar. Os artistas começaram a aspirar mais reconhecimento, esperando ver a pintura assumir seu lugar ao lado da poesia, da erudição e das letras e até ser introduzida no círculo das sete artes liberais. Alguns grandes artistas, como Rafael, Leonardo, Michelângelo e Dürer quase atingiram esse status, mas para artistas menores isso estava fora de questão.
No século XVIII, contudo, a arte finalmente tomou seu lugar como forma de “alta cultura”. Ser artista podia significar ser um gênio, um dos grandes líderes da humanidade, um visionário, um profeta, um alto sacerdote da cultura.
A Arte, com letra maiúscula, chegou a desafiar o lugar até da própria religião, tornando-se uma nova religião num mundo secularizado.
A arte era algo para ver ou, no caso do músico, para ouvir ou, no caso da literatura, para ler. Especialmente a arte visual não era com certeza algo com que se devia gastar dinheiro. Como resultado, muitos artistas eram muito pobres, e até obras importantes não puderam ser produzidas sem subsídios elevados. Agora a arte, ou Arte, tornava-se elevada e refinada, mas devia ser mantida viva de modo altamente artificial.
Atitudes dos cristãos quanto as artes
A justificativa da primeira atitude pode ser que, no fim das contas, o verdadeiro chamado na vida de uma pessoa é ser testemunha de Cristo e viver a vida “espiritual”. E, uma vez que a arte não entra neste domínio, pode ser ignorada. O interessante, contudo, é que ao assumir essa atitude não se pode de fato evitar a arte. Pois, mesmo tendo descartado a arte, ainda se usam vitrais na capela e se ilustram panfletos evangelísticos ou publicações da igreja, usando ou a arte “antiga” (como uma cópia de uma pintura de Holman Hunt) ou arte popular. Que o panfleto se mostre ordinário parece não incomodar ninguém. Afinal, a mensagem é tudo que importa.
A segunda atitude, aquela do cristão que entra no campo da arte, é em geral difícil de defender em face do primeiro. “Não é pecado dedicar a vida às artes, que de todo modo são mundanas, apenas porque dão prazer?” Muitos cristãos ativos nas artes sentem-se como um tipo de hedonista, alguém que nunca trabalha (a arte não é trabalho!). E estão em constante perigo de cair nas malignas ciladas deste mundo. Geralmente, ele é visto como uma pessoa de ideias estranhas ou pouco práticas. Afinal, o que a arte tem que ver com a realidade da vida cotidiana, sobretudo a vida cotidiana “cristã”?
Muitos cristãos admiráveis que têm talento ou interesse nas artes são forçados a defender seu envolvimento dizendo que a arte é um excelente meio de evangelizar. Quando a arte é usada como ferramenta evangelística geralmente é insincera e de segunda, rebaixada ao nível da propaganda. Eu chamaria a isso de uma forma de prostituição, de abuso do talento de alguém.
A arte não é uma religião, nem uma atividade relegada a uns poucos escolhidos, nem tampouco uma atividade mundana supérflua. Nenhuma dessas visões de arte faz justiça à criatividade com que Deus dotou o homem. É a capacidade de criar algo belo (e também útil), assim como Deus criou o mundo belo e disse: “É bom”. A arte como tal não precisa de justificativa.
A suprema justificativa para toda a criação é que Deus desejou que ela existisse.
Casar, adorar ao Senhor, cultivar a terra, preparar refeições, conversar, sentir, pensar — nada disso precisa de justificativa no contexto de “Santificado seja teu nome, seja feita a tua vontade”.
Do mesmo modo, a arte não precisa de justificativa. Ela é significativa em si mesma, não só como ferramenta evangelística ou para servir a um propósito prático ou para ser didática. A arte deve ser livre: livre da política (incluindo a política eclesiástica); livre das tradições do passado, livre das modas do presente, livre do julgamento do futuro; e livre de nossas necessidades econômicas e sociais. A arte não pode tornar-se uma mera função de alguma dessas sem perder seu lugar indispensável na vida humana. Afinal de contas, Cristo morreu por nós para restaurar nossa humanidade e devolver o significado à criação de Deus. Nem só o evangelismo é cristão, mas a vida inteira é cristã, a menos que tornemos Cristo muito pequeno.
Carta para um artista cristão
Se Deus nos deu talentos, podemos usá-los criativamente — ou, antes, devemos usá-los criativamente. Um artista cristão não é diferente, digamos, de um professor cristão, um ministro cristão, um acadêmico cristão, um comerciante cristão, uma dona de casa cristã ou qualquer outro que tenha sido chamado pelo Senhor a um trabalho específico conforme seus talentos. Não há regras específicas para artistas, nem tampouco eles têm isenções específicas às normas da boa conduta que Deus estabeleceu para seu povo. Um artista é simplesmente uma pessoa cujos talentos dados por Deus pedem-lhe que siga a vocação específica da arte. Pode haver circunstâncias em que o amor a Deus proíba certas atividades artísticas ou torne-as impossíveis, mas o presente momento da história não pede tal sacrifício. Muito pelo contrário. Nós — o mundo cristão e o mundo em geral — precisamos desesperadamente de artistas.
Ser filho de Deus significa receber liberdade — a liberdade cristã sobre a qual muito falaram o próprio Cristo e, em suas cartas, o apóstolo Paulo. A liberdade é o mais importante para qualquer um que queira fazer um trabalho artístico. Sem liberdade, não há criatividade, sem liberdade não há originalidade, sem liberdade não há arte, sem liberdade não há nem mesmo cristianismo. Esta liberdade só pode existir se estiver baseada no amor a Deus e ao próximo, e se nos tornarmos novas pessoas mediante a obra consumada de Cristo e pelo Espírito Santo que nos é dado. Sem esta base, a liberdade facilmente pode significar ser livre de Deus e, consequentemente, livre para satisfazer todos os desejos do coração pecaminoso de uma pessoa não redimida. (Para saber mais sobre esta questão da liberdade, veja a carta de Paulo aos Gálatas.)
A liberdade cristã é diferente da liberdade humanista, a liberdade que as pessoas se dão para construir um mundo segundo sua própria concepção (como foi tentado pelo Iluminismo e pelo desenvolvimento humanista depois desse período no mundo ocidental).
Liberdade também quer dizer que não há prescrições quanto a assuntos. Não há necessidade de um cristão ilustrar histórias bíblicas ou a verdade bíblica, embora possa, é claro, optar por fazê-lo. Artistas têm o direito de escolher um assunto que considerem que valha a pena. Mas a arte não representativa não proporciona mais liberdade do que a arte de contar histórias ou alegorias intrincadas.
A liberdade inclui o direito de escolher seu próprio estilo; livre da tradição, mas também da modernidade, da moda, do hoje e do amanhã bem como do ontem. No entanto, não há necessidade de esbofetear o contemporâneo, como algumas correntes da arte hoje julgam necessário. A liberdade cristã também é liberdade da cobiça pecaminosa do dinheiro, de buscar o louvor humano, da busca pela celebridade. É a liberdade para ajudar o próximo e dar-lhe algo com que se deleite.
A arte não é autônoma. “Arte pela arte” foi uma invenção do último século para desatar os nós entre arte e moralidade; ou seja, dar à arte a liberdade de retratar todos os tipos de pecado como se não fossem pecaminosos, mas simplesmente humanos. O entendimento humano da depravação, da moralidade do bem e do mal, foi assim solapado ou apagado. Os resultados estamos vendo hoje, em nosso século. O significado da arte está em ser arte; mas não é autônomo e tem milhares de vínculos com a vida e com o pensamento humanos. Quando artistas deixam de considerar o mundo em suas formas múltiplas fora do domínio artístico, sua arte murcha, porque já não tem nada que dizer.
Muito da arte abstrata de hoje é arte, sim; mas tem pouco significado porque é só arte. Todos os laços com a realidade foram cortados. Isso se aplica tanto à cerâmica quanto à pintura. A arte tem seu próprio significado e não precisa de desculpas. Mas perde o significado quando não quer ser nada senão arte e, portanto, corta seus laços com a vida e com a realidade, assim como o trabalho acadêmico mico perde sua importância e interesse se o conhecimento é buscado como fim em si mesmo.
O artista tem de fazer arte enquanto pensa no próximo com amor, ajudando-o e usando o próprio talento em favor dele.
Comunicando o Evangelho ao homem moderno
O que torna os cristãos diferentes das outras pessoas é que estes são mais plenamente humanos, mais conformes ao que Deus pretendia que fossem quando os criou. Não pessoas com regras bizarras que só se isolam de seus vizinhos ou com crenças que nada têm que ver com a vida cotidiana, mas parecem adequadas somente para a alma, para o futuro ou para as crises na vida.
Ao falar de Cristo aos outros, temos de ter em mente a quem nos dirigimos e de estar familiarizados com seu mundo. Paulo disse que devemos ser judeus para com os judeus e gregos para com os gregos. Muitos