Fabio Shiva 03/10/2020
o mito da objetividade científica
Peguei esse livro para ler como parte da pesquisa para uma história de ficção que estou escrevendo. Nesse sentido o livro foi muito útil, especialmente o glossário ao final. Contudo acabei tendo muitos outros aprendizados e oportunidades de reflexão a partir dessa leitura. O texto foi originalmente uma dissertação de mestrado, que tem como tema a criação, funcionamento e extinção de um terreiro de umbanda entre junho e setembro de 1972, no bairro do Andaraí, no Rio de Janeiro. Só agora, ao escrever essa resenha, noto duas sincronicidades com minha própria história: morei no Andaraí durante boa parte dos anos que vivi no Rio, e creio ter ao menos assistido a uma palestra da professora Yvonne Velho durante o ano que passei como aluno da Faculdade de Ciências Sociais da UFRJ, para recuperar minha criatividade e meu “modo bicho grilo de ser”, após ter saído do Exército Brasileiro como 2º Tenente R2 e me descobrir incapaz de escrever um verso de poesia (felizmente, a terapia deu certo!).
Acompanho os estudos e práticas de minha esposa Fabíola Campos, que é umbandista, e foi muito intrigante perceber que quase nada dos rituais descritos no livro foram reconhecidos por ela! Creio que isso se deve a uma série de fatores, sendo o mais relevante o fato de a Umbanda, como religião muito nova (com pouco mais de um século de sua fundação) e tipicamente brasileira, ainda está em fase de estruturação e consolidação, com uma saudável reformulação de suas práticas. Muitos terreiros hoje, por exemplo, já não utilizam álcool ou tabaco em seus rituais, o que era praticamente obrigatório, imagino, há quase cinquenta anos atrás, quando o estudo antropológico de Yvonne Velho foi realizado.
Dois outros fatores muito colaboraram nesse não reconhecimento da Umbanda descrita no livro, e justamente daí tirei os maiores aprendizados dessa leitura. O primeiro fator de estranhamento foi a própria história do terreiro, que foi fundado por um aluno de Yvonne, que na ocasião estava na Umbanda há apenas um ano, com a motivação de criar um espaço para uma Mãe de Santo conhecida dele, que não tinha terreiro. Só que essa Mãe de Santo acaba ficando “louca” pouco após a inauguração do terreiro, e um outro Pai de Santo é chamado para assumir, sendo que logo começam conflitos com o Presidente do terreiro, justamente o aluno de Yvonne. Falando de forma bem sincera, achei muito bizarra essa história, que certamente destoa da história da maioria dos terreiros, e é muito curioso que justamente esse tenha sido o que calhou de ser estudado nessa dissertação e tenha obtido tanto êxito a ponto de continuar sendo um texto de referência até os dias de hoje.
Aí entra o segundo fator de estranhamento, que foi o da participação da própria autora na sequência de eventos descritos no livro. Apesar de se colocar com muita transparência como parte ativa nos acontecimentos, achei muito significativo o fato de a autora aparentemente não ter notado que os conflitos que levaram ao fechamento do terreiro foram, muito provavelmente, estimulados por ela própria! Afinal, ela não estava apenas como uma observadora, mas como professora do Presidente do terreiro, como uma figura de autoridade. E os conflitos entre o Presidente e o Pai de Santo começaram justamente no dia em que ela resolveu entrevistar o Presidente primeiro, gerando a ciumeira que acarretou a cisão final.
Fiquei imaginando como seria uma pesquisa dessas, caso fosse realizada no âmbito de minha própria prática religiosa, que consiste em frequentar um grupo de meditação. Fiquei imaginando a coordenação de nosso grupo anunciando que dali em diante teríamos uma pessoa observando a nossa prática meditativa. Talvez com o tempo eu acabasse me acostumando, mas certamente seria um grande incômodo cerrar os olhos para meditar sabendo que no mesmo ambiente estava alguém de butuca espiando com um olhar especulativo!
É muito curiosa a mitologia da imparcialidade e da objetividade científica. Se hoje a mecânica quântica já demonstra como a presença de um observador altera a experiência no nível subatômico (vide por exemplo o clássico experimento da fenda dupla), que dirá no campo das interações humanas! Mais curiosa ainda é uma ciência que se crê imparcial ao considerar todos os fenômenos da espiritualidade como decorrentes das funções psíquicas. Uma pesquisa científica que tenha a coragem de admitir a possibilidade de que a espiritualidade seja real, ao invés de já partir do pressuposto de que não passa de sistema de crenças, representará notável avanço na construção do saber científico.
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2020/10/guerra-de-orixa-um-estudo-de-ritual-e.html