Ladyce 27/10/2020
Quando recebi de presente de Natal em 2019 este livro, não sabia que havia um filme baseado na obra, estrelado por Judy Dench. Pode ter sido muito bom se fez jus a obra de Jeannie Rooney, lançada no Brasil pela Record com tradução do inglês por Cláudia Mello Belhassof. Pensei no início tratar-se de história de espionagem nos termos tradicionais, próxima às obras de Ian Fleming que fizeram do agente 007 do MI5, um dos mais populares e sedutores personagens no mundo inteiro. Foi surpreendente realizar que esta espiã, personagem principal, não era figmento da imaginação de um escritor, mas obra de ficção baseada na biografia de verdadeira espiã que passou segredos importantes do governo britânico para as mãos dos russos. Tão importante foram eles que ela foi considerada a agente da maior importância para a KGB. A espiã vermelha, portanto é uma biografia ficcionalizada de Melita Norwood, a mulher que passou segredos de estado para as mãos do inimigo.
Ainda que a maioria dos leitores considere este livro uma “trama envolvente sobre o amor e o significado da lealdade” como informa a orelha do livro, acredito que seja principalmente um longo ensaio, uma obra de apreciação sobre traição. Ou melhor, a constatação das infinitas maneiras em que uma pessoa pode ser traída ou trair.
A primeira consideração que me ocorreu foi a diferença entre inglês e português ao tratarmos de traição. Em inglês para traição, há duas palavras distintas. “Treason” que limita a traição a um ato de quebra de confiança nos interesses de estado e “Betrayal” cujo significado também é traição, mas abraça um maior número de situações de quebra de confiança, incluindo a traição amorosa. A espiã vermelha trata de ambos os significados. Não só Joan Stanley (o nome de Melita Norwood no livro) trai seu país, mas trai e é traída por amigos, familiares e parceiros amorosos.
Depois voltei ao significado de traição do ponto de vista histórico. É atribuído, sem qualquer documentação, a Winston Churchill a máxima “é o vencedor quem escreve a história”, ou “cabe ao vencedor escrever a história”. Questionar a traição de estado é não aceitar o rumo da história. Joan Stanley é traidora porque a Grã Bretanha estava no grupo que venceu a Segunda Guerra Mundial. O mesmo aconteceu aqui no Brasil, com Domingos Fernandes Calabar, traidor por apoiar a colonização holandesa, quando Portugal vencia os invasores no nordeste brasileiro. Nos anos 70, Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra lançaram a peça, musicada: Calabar: o elogio da traição (1973) que pretende questionar esta traição. Mas não se consegue contar a história pelo lado dos que perderam, pois qualquer situação mencionada de como seria a realidade caso outros tivessem vencido, não passa de fantasia, paisagens imaginárias, idealizadas de uma história que nunca aconteceu. E por mais que na biografia ficcional essa espiã inglesa pareça pretender o equilíbrio entre potências mundiais, suas ações são imperdoáveis por submeter o mundo inteiro à perigosa corrida nuclear. Só por essas considerações suscitadas pela leitura de A espiã vermelha este livro já teria me satisfeito pelo saudável exercício filosófico que evoca.
Bom notar que a narrativa em capítulos intercalados entre o presente e o passado é muito eficiente e mantém o interesse do leitor do início ao fim. Descobrimos também ao longo do texto outras maneiras em que uma pessoa pode trair e ser traída. É um livro rico de observações, passagens que requerem do leitor atento, uma pausa para avaliar, desde “a nacionalidade é uma falsa distinção” [108] a “que coisa horrível envelhecer. Não tem certeza se recomendaria isso a alguém;” [182]. Este é um livro que questiona aquilo que tomamos como certo. Levanta questões. Tem sucesso fazendo isso, obliquamente.
Joan Stanley é uma personagem muito rica. Repleta de dúvidas sobre si mesma acaba se revelando mais complexa do que se imaginaria no início. É uma cientista, uma raridade na época, mulher moderna até pelos dias de hoje. Mas enquanto é intrépida para algumas coisas, também precisa da aprovação dos outros. Recomendo a leitura. Mesmo que não se saiba onde a ficção se desvia dos fatos desta recente história. Recomendo.