Procyon 11/10/2021
O Livro da Inquietação:
Esta é uma das maiores e mais sublimes obras de Fernando Pessoa, sendo esta, em prosa, assinada pelo seu semi-heterônimo, Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros, em Lisboa. O romance, biográfico e poético, fora publicado, sumariamente, em 1982. O livro é de todo fragmentado, e parece, em um primeiro momento, uma espécie de estudo da essência da consciência humana - entre muitas outras coisas. Bernardo Soares, de todo este um semi-heterônimo particular, é determinado, pelo próprio Pessoa, da seguinte maneira: "é um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela", escrevendo em uma carta, em janeiro de 1935. E talvez se deva ao temperamento de Soares, soando próximo ao do próprio poeta, soando deveras enigmático em seus escritos.
As inúmeras contradições que o eu eu-lírico expressa, no que se demonstra nas contradições, mas, afinal, no que se baseia o homem se não em um ser absolutamente contraditório? No que se fundamenta o ser infeliz que, a todo e a qualquer instante, está prontamente disposto a mudar? A mudança é a evidência mais pura da realidade. Se te é possível perceber a própria mudança, tu és vivo; sim, plenamente vivo. Aquele que muda-se é aquele que não contenta-se com o que é, e nem espera ser algo no futuro: aquele que muda é aquele que age, é o ser vivo legítimo. Quem não vive não abstém-se do sossego. Aquele que não sente o incomodo da vida é aquele que está morto, ignóbil, e inutilmente embriagado com o amor, com a devoção.
O livro é incômodo, e isso o faz de plena sabedoria, que faz o cérebro de qualquer leitor, minimamente atento, dilatar-se e remoer-se de dor (e isto de tanto pensar-se: o sonho causa a dor; o sonho de pensar aquilo que não se pensava, o sonho desejar algo impossível; o sonho resulta em desejo, e o desejo resultado na dor). Das inúmeras vezes em que li algum um trecho deste livro sem devidamente lhe dar a clara e devida atenção, voltei-me a lê-lo de novo e de novo. Pode ser cansativo o processo, mas o processo de pensar e absorver o seu conteúdo vale a pena. O que é a vida se não um processo incômodo de aprendizado? O aprendizado machuca, e isso faz da vida valer a pena ser vivida. Ler este livro é como se injetassem mil alfinetes em seu crânio; é como se lhe deixassem embriagado em um gelo frio e desconcertante.
"Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo."
"Tenho sonhado demais": sim, demasiadamente; tenho sonhado como nenhum louco jamais sonhou antes; os belos devaneios que me dizem respeito, os sonhos auréolos que não lembro mais; tudo que eu sonhei ontem esquecerei amanhã; tudo que é real em mim é passageiro, pois até mesmo o sonho passa, portanto até mesmo o sonho é real - perfeitamente real. Em seu Exame de Consciência: "viver a vida em sonho e falso é sempre viver a vida. Abdicar é agir. Sonhar é confessar a necessidade de viver, substituindo a vida real pela vida irreal, e assim é uma compensação da inalienabilidade do querer viver." Parece um infectante ultraje que a obra faz em mim próprio, transfigurando-me a uma alma mais sóbria e lúgubre que a de costume; acostumando-me a sonhar o real, ao não ser fútil a ponto de abster-se da solidão, não tendo receio de dizer coisas secamente trágicas. Não tenho sonhado demais, tenho vivido demais. A vida passa, e perco meu tempo sonhando; sim, o tempo, esse mesmo tempo que passa e não volta mais. O tempo que vem e vai, sem nenhuma misericórdia nefasta; totalmente justo é o tempo, que não possui a justiça de sentir pena de algo concreto. O tempo é isso.
"Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã. Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje."
O autor, o modesto autor, ajudante de guarda-livros, também faz aqui sua devota paixão pela Língua Portuguesa (outra identificação), de maneira tão bela que só a prosa poderia permitir. Como ele mesmo diz: "A minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse."
No diário, na sonolência de Pessoa, Soares demonstra os seu sentimentos, o seu desespero, a sua desesperança e o seu pessimismo de forma demasiado profunda através de pesadas entradas, pelos seus escritos íntimos e complexos, que tornam, o livro inacabado, ser, portanto, inesgotável. Soares aqui também revela sua repulsa pela mesquinhez das pessoas a sua volta, visões de mundo de estirpes semelhantes, e, periodicamente, nos momentos certos, fazendo uso de seu modernismo pleno (a ironia, os neologismos, críticas das situações cotidianas, etc.). Ele diz muito sobre a arte, sobre o sonho, sobre a escrita, e tudo mais, de forma fenomenal e inquieta. Se faz ainda uma análise sobre como as pessoas a sua volta possuem sonhos pérfidos e vazios, com um olhar irônico e desapaixonado, até para ele mesmo. Uma obra que demonstra o tédio, a inquietude, a obsessão de sonhar, e o desassosego de viver.
"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer."
OBS: A outra estrela faltante se deu por conta da edição razoável.