Gustavo Araujo 27/03/2012
As 160 páginas mais pungentes da literatura dedicada ao Holocausto judeu
Há muito perdi a conta do quanto li a respeito do Holocausto, um dos capítulos mais infames da história da humanidade. Para ser franco, já me considerava até anestesiado pelos relatos das barbáries cometidas pelos alemães nos idos de 1942 a 1945. Essa sensação de rotina, entretanto, desapareceu quando li “Eu Sou o Último Judeu”, de Chil Rajchman.
Claro, as descrições de assassinatos e torturas, da vida miserável e das milhares de mortes anônimas estão lá, mas o que verdadeiramente causa impacto na narrativa de Rajchman é a crueza da escrita, o modo direto, quase impessoal, que o autor utiliza para traduzir os onze meses que passou em Treblinka.
A apenas 100km de Varsóvia, afundado até a medula em um cenário de charco e areia, Treblinka tornou-se conhecido como o campo de extermínio mais eficiente na máquina assassina nazista.Durante seus dezesseis meses de funcionamento, o campo ceifou a vida de nada menos que 900.000 mil pessoas – homens, mulheres e crianças – de modo industrial, numa média de 56 mil pessoas por mês, ou quase duas mil pessoas por dia.
Não havia trabalho forçado, como em Auschwitz ou Birkenau. Em Treblinka, os judeus eram vertidos dos trens abarrotados e imediatamente divididos em filas. Despojados de seus pertences e do que lhes restava de dignidade, marchavam, nus, sob gritos e vergastadas diretamente para as câmaras de gás, onde o fim da vida lhes esperava.
Alguns eram sacados ao acaso dos corredores da morte para os trabalhos decorrentes da matança. Chil Rajchman foi um deles. Iniciou como tonsurador, cortando os cabelos das mulheres que seguiam para a morte iminente, testemunhando em silêncio seu choro e desespero ante a hora derradeira. Foi incumbido de revirar pilhas e pilhas de roupas, em busca de joias e dinheiro para os nazistas, tendo, em certa ocasião, se deparado com o vestido de sua irmã. Arrancou dentes de cadáveres, transportou corpos para valas comuns e foi obrigado a reabri-las para queimar o que restava das pessoas, numa tentativa dos alemães em acabar com qualquer evidência dos crimes.
Por razões que derivam puramente do acaso, Chil Rajchman foi um dos 57 sobreviventes de Treblinka. Isso mesmo: apenas 57 pessoas sobreviveram ao campo. Rajchman fugiu do campo em agosto de 1943, em decorrência de uma rebelião, escondendo-se em Varsóvia, onde escreveu o relato de sua experiência antes mesmo que a guerra terminasse.
Com o fim do conflito, Chil Rajchman imigrou para o Uruguai, onde se casou e teve três filhos. Viveu até 2004, testemunhando em diversos processos contra criminosos nazistas. O texto sobre seus dias em Treblinka, no entanto, seria publicado somente em 2009.
A concepção do relato durante a guerra talvez seja a razão maior da crueza e da simplicidade estarrecedora que o permeiam. Não há espaço para divagações pessoais ou interpretações filosóficas. Não existe o “eu”. Desfez-se o homem. Demoliu-se o ser humano. Talvez sejam as 160 páginas mais pungentes da literatura dedicada ao Holocausto judeu.
Um livro imperdível.