Flávia Menezes 15/01/2024
??SE UM DIA OCÊ SE LEMBRAR, ESCREVA UMA CARTA PRA MIM...?
?Gente Pobre? é o primeiro romance do escritor, filósofo e jornalista do Império Russo, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, que foi escrito entre os anos de 1844 e 1845, e publicado em janeiro de 1846, quando o autor tinha apenas 24 anos, revelando em suas páginas uma maturidade espantosa.
Com uma narrativa floreada própria da época, o romance é escrito em formato de cartas, onde um funcionário de meia-idade se corresponde com uma jovem costureira que mora próximo a ele, compartilhando um com o outro os pequenos acontecimentos diários de suas vidas sofridas, trazendo reflexões de suas individualidades que a miséria torna tão insignificante.
Dostoiévski era um leitor voraz, e estava tão instigado e envolvido por essa nova tendência literária do realismo russo, que "Gente Pobre" foi considerado umas das primeiras demonstrações do crescente amadurecimento desta tendência, colocando o nome do autor em grande destaque com outros escritores e com Bielínski, um importante crítico da época.
Tendo bebido em grandes fontes como Gógol e Púchkin, porém, acrescendo a escrita um toque especial "à lá Dostô", no qual não se limita a retratar o homem pobre e sem atrativos que tem a sua inteligência e capacidade esmagadas pela crueldade da sua condição social e financeira, Dostoiévski foi muito além de trazer à público sua manifestação em forma de romance social, para se aprofundar e sondar a alma dos seus personagens... o que pensam e o que sentem... estabelecendo com eles um diálogo honesto.
Neste romance, esse homem ?sem importância? é o mesmo que se tornará um ?homem grandioso? por ser capaz de pensar, sentir e agir da forma mais profunda e humana, ainda que socialmente esteja em uma condição de pobreza. E é nesta situação precária, onde enfrentam tantas privações, que seus personagens revelam a sua máxima sensibilidade e riqueza espiritual, munidos de compaixão um para com o outro (e para com os demais), agradecendo o pouco que recebem, e dividindo o pouco que possuem.
Acompanhar cada uma dessas cartas é algo tão belo, porque é impressionante a habilidade que Dostoiévski tinha de colocar tanta emoção em cada uma das suas palavras (naturalismo sentimental), nos fazendo criar esse vínculo quase que instantâneo com seus personagens.
E em pensar que Dostoiévski era apenas um jovem de 24 anos quando sua primeira tentativa literária foi lançada, e que maestria a dele em nos transportar para uma época e país tão distantes, nos fazendo ver com clareza cada um dos acontecimentos, mesmo com um mínimo de descrição, que nos faz ainda assim compreender tudo aquilo que não nos é dito.
Além disso, preciso confessar que ?Gente pobre? me transportou para um momento do meu passado, onde escrever e receber cartas era parte da nossa comunicação com as pessoas queridas, quando celulares ainda não existiam, e as ligações telefônicas eram muito caras. E como era gostosa essa sensação de ouvir o carteiro passar, e sair correndo só para conferir se havia alguma correspondência de um amigo ou amiga que morava longe!
Por isso não há como não dizer como foi prazeroso reviver essa sensação através das cartas trocadas por Makar Diévúchkin e Várvara Dobrossiélova. Especialmente porque era tão tocante a companhia que faziam um ao outro, mesmo quando não podiam estar perto.
Mas eu sinto que as cartas de antigamente não são iguais às mensagens de Whatsapp? ou Telegram? ou qualquer outro aplicativo de mensagens do momento.
Diferentemente dos nossos tempos atuais, onde é tão frequente a troca de mensagens, as cartas de Makar e Várvara eram tão cheias de honestidade. Não tinham medo de dizer o que sentiam, nem de partilhar cada pensamento, pois mesmo quando era necessário tocar em um assunto mais delicado, tudo era dito com tanto cuidado, que cada mensagem era recebida pelo seu interlocutor com a exatidão dos sentimentos que seu remetente teve ao escrever.
Isso me fez lembrar a época da minha adolescência, e das cartas que eu trocava com amigas que me pediam conselhos (ou vice-versa), em que falávamos de tudo abertamente, porque sabíamos que seríamos ouvidas sem preconceitos, e com a máxima atenção.
Que saudade desta época em que a honestidade era algo tão inerente às relações. Que falar de sentimentos era bom, e os ouvidos que nos escutavam eram tão cheios de carinho e empatia que não tinha como não sair de uma conversa sem se sentir muito mais forte e confiante!
E essas sensações do passado foram o que Dostoiévski mais me despertou com essa obra. E como foi bom relembrar algo tão sincero, tão verdadeiro, de uma época em que era tão corriqueiro escrever cartas. Algo tão distante das facilidades da tecnologia atual que tanto nos aproxima, mas que ao mesmo tempo nos afasta, porque hoje já não somos tão abertos como antes, e muitas vezes isso até nos expõe a mentiras que são ditas como verdades.
E aí eu me pergunto: por que temos que ter tanto medo de sermos honestos uns com os outros? Onde foi que perdemos essa facilidade de falar sobre o que pensamos e sentimos? Por que será que nos tornamos seres tão superficiais? Será que um dia seremos capazes de voltar a ser verdadeiros como antes? Sinceramente? Eu desejo que sim!