Vitor.Romito 25/02/2024
Excelente
Clássicos são atemporais e incríveis. Ao mesmo tempo que nos trás um pouco de como a vida era em uma determinada época, conseguem sobreviver ao tempo e continuam a dialogar com o leitor atual. “Capitães da areia” é um destes e mostra-se tão atual que até assusta, principalmente quando se nota que tem quase noventa anos de publicação.
A estória dos meninos que vivem em um trapiche na cidade de Salvador e precisam praticar atos questionáveis e imorais para sobreviver é tocante e intensa. A linguagem utilizada, mais coloquial, cheia de gírias e expressões do cotidiano (que misturam o religioso cristão com o de matrizes africanas) é genial, o que aproxima o leitor daqueles garotos. Isso ilustra o quanto Amado é habilidoso com as palavras, já que as atitudes dos Capitães e a natureza em que estão inseridos, sem a devida descrição da situação e um toque de leveza em algumas partes (vide a questão do carrossel), afastaria a empatia que teria caso as ações fossem colocadas de forma mais crua e bruta (principalmente quando descreve uma situação bem complicada envolvendo uma garota na praia e o líder dos Capitães de Areia).
Essa habilidade já salta a vista logo no início com as notícias de um jornal local sobre os grupo e tratamento distinto que este dá para cada membro da sociedade e a forma como cada um deles relatam a situação. A forma como o chefe de polícia, o juiz de menores e o diretor de reformatório empurra um para o outro me dá a sensação de “já vi isso aí”. Esses personagens ganham aditivos na figura da mulher que encontra o padre junto dos meninos, nos policiais em si e nas altas “patentes” da igreja. Já os representantes das camadas mais baixas, ao defenderem os Capitães, mesmo que não concordem com a ação em si, são relegados a segundo plano no âmbito da notícia ou desacreditados de forma mais contundente.
Os Capitães de areia é um grupo grande, mas Amado foca em apenas alguns, e destes os que mais me chamaram a atenção foram Pedro Bala (o líder), o Professor, o Gato, o Sem-Pernas. Claro que também tem o Boa-Vida, o Pirulito, o Barandão, o Vida-Seca, mas achei que estes eram mais coadjuvantes que agiam no entorno daqueles quatro. A personalidade deles condiz com as ações que ocorrem no decorrer do livro. Não há uma sensação de “acho que isso não condiz com o menino”. E dos quatro, a trajetória mais comovente, para mim, foi o do Sem-Pernas, um menino coxo. O seu desejo, ilustrado pelo cachorro que o acomponha, é comovente e o desenrolar de sua história foi, para mim, perturbadora, em que um sentimento crescente na consciência do menino traz melancolia.
Não dá para não escrever sobre Dora. Ela entra para o grupo e cria uma reviravolta grande neles. E aqui, novamente, demonstra a habilidade de Amado como contador de histórias, pois toda esta trajetória da guria, desde o início com o problema dos pais, encontro com o grupo, as aventuras que passam e o desfecho delas é muito real e impactou tanto nos garotos como em mim quanto leitor.
A única coisa que talvez tenha me desagradado na leitura foi o início quanto a forma que era desenvolvido, mesmo entendendo essa escolha, que foi uma forma para desenvolver melhor o grupo. A sensação era que havia microssituações para aproveitar um dos Capitães em ação, como se fossem pequenas “quests”. Mas no decorrer do livro, principalmente com depois do encontro do Professor com um senhor e da chegada do “alastrim”, vem a sensação de progresso.
Finalmente, o desfecho dos personagens é satisfatório, alguns um tanto óbvios quanto a sua trajetória e outros trágicos. Destes, o que achei com pouca probabilidade de ocorrer seria o do Professor, porém não afasta do satisfatório.
Assim, é um livro com uma história poderosa, muito bem escrita e que assusta por ser atual em seus diversos temas, como o abandono e descaso com os menores em situação de rua e a forma como as camadas da sociedade enxergam eles e suas ações. Um livro que vale muito tirar um tempo para ler e refletir sobre o que está escrito.