edu basílio 30/03/2024lindo, arlindo
"arlindo" chegou em minhas mãos de maneira inesperada.
um amigo querido e eu papeávamos sobre coisas malucas, como só duas almas afins com mentes meio piradas são capazes de misturar em uma conversa dando risada: a morte, cremação ou aquamação, o que é mais
eco-friendly?, como queremos que nossos pozinhos sejam atirados ao vento do alto da torre eiffel, memes printados do instagram zoando com frases de freud e lacan ou malhando o bozo e sua horda de zumbis. e, claro, livros, uma paixão que compartilhamos. "e por falar em livros, edu, como assim você não conhece a HQ do arlindo, tô indignado!", ele disse. "ah, eu te prometo que corrigirei esse grave desvio de caráter e vou ler sim, migo", eu disse. e nossas vidas seguiram.
então ele me avisa, cerca de um mês depois, que um presente iria chegar pra mim.
enchi-me de alegria e angústia: embora eu adore dar presentes e o faça com frequência, recebê-los me é um problema já bastante revirado em psicoterapia. tenho uma boa compreensão das origens dessa "ferida de merecimento", mas quem dera se pudéssemos cauterizar nossas feridas psíquicas com pontos de sutura ou só engolindo pílulas. estou em processo de cura.
claro que, vindo dele, eu sabia que era um livro. levantei uma lista de "suspeitos", mas realmente passei batido pelo "arlindo". ao abrir o envelope da amazon tudo se iluminou, a conversa de semanas antes emergiu da minha memória duramente sequelada pela covid e, durante uma segunda-feira inteira, eu virei só um enorme sorriso sobre duas pernas branquelas.
pus "arlindo" na frente em minha fila de leituras, que é sempre pequena -- três ou quatro livros apenas, porque vejo 'planejamento zero' como vagar a esmo pela vida, e 'planejamento demais' como ilusão psicorrígida (e meio arrogante até) de controle. terminei o calhamacinho com que me arrastava havia semanas, e então emendei com a leitura de "arlindo" nesse feriadão pacato por que meu coração ansiava (após o feriadão anterior aterrorizante que foi o meu).
arlindo é um adolescente que está se descobrindo gay no fim dos anos 1990, começo dos 2000. divide seu tempo entre os estudos e a ajuda à mãe em seu trabalho como cozinheira, vive sob o jugo de um pai macho-tóxico-tosco, sofre bullying de babacas na escola, tem em marissa uma adorável melhor amiga, e seu coração está flechado por luis felipe, outro jovem gay gentil, já um pouco calejado e mais seguro sobre quem é e sobre seu valor. eis a premissa. deixemos o restante para quem desejar descobrir por si :-) para mim, escrever sobre as leituras não é fazer resumo de tramas, e menos ainda ser desagradável divulgando spoilers. é muito mais sobre me abrir, me expor um pouquinho mesmo, compartilhando minha experiência pessoal com a obra. e é só isso que pretendo aqui.
terminei "arlindo" há poucas horas, emocionado.
foi minha primeira leitura 5 estrelas de 2024.
a genZ pode até curtir, mas quase certamente não conseguirá vivenciar tudo no coração, pois mesmo se muito há ainda para se evoluir como sociedade, é menos difícil se descobrir gay hoje no brasil do que era há 20-30 anos. além disso, não é apenas a peculiaridade dos traços, o inusitado contraste amarelo/rosa e a fofura da história que encantam. existe no todo uma magia nostálgica acessível só a nós, trintões e quarentões, que fomos adolescentes naqueles anos. a "trilha sonora" da história do arlindo, inteligentemente salpicada do começo ao fim, nos remete de uma maneira bastante imersiva ao final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, um mundo de LAN houses, videolocadoras, CDs, MSN...
... sem streaming, sem redes sociais, sem IA; um mundo que parecia mais "inocente". a nostalgia tem esse
petit quelque-chose de paradoxal: o coração aperta de saudade de uma época em que muitas facilidades nos eram inimagináveis, em que muitos de nós até sofríamos privações ou intimidações, mas na qual nossa percepção geral do mundo era mais leve e esperançosa. o mundo pós-2020 perdeu muito de seu encanto e deixa menos margem para a esperança -- ou pelo menos é essa minha leitura dele.
sinto-me feliz por ter podido ler algo tão doce e singelo -- e inesperado! sou grato ao meu amigo por ter tido a a generosidade e a delicadeza de me ofertar esse adorável presente, sem natal, sem aniversário, sem outro motivo que não seu desejo de me agradar partilhando comigo algo de que ele gostara.
que esta pequena resenha celebre meu contentamento e minha gratidão.
--