Marc 13/04/2024
Quando li essa história pela primeira vez, já conhecia Paul Auster. Seu livro “A invenção da solidão” havia me chamado a atenção na prateleira da biblioteca da faculdade e o peguei para ler. Mas não prossegui descobrindo outros livros do autor. Para mim, naquele momento, Auster escrevia sobre memórias e relações humanas, com uma grande profundidade, mas eu não imaginava que ele poderia escrever uma espécie de livro policial que flertasse com a questão da linguagem e da escatologia cristã. E, para ser franco, quando li a primeira edição dessa hq, ainda não conhecia muito sobre esses temas, o que me levou a passar ao largo de toda a profundidade que essa história é capaz de alcançar. Para quem tem algum tipo de preconceito com hqs, leia “A trilogia de Nova York” de onde essa história foi tirada — mas se prepare, porque essa é a primeira história e é a mais simples de todas.
O “vilão” da história é um intelectual que formulou uma teoria, com base em sua interpretação pessoal de “Paraíso Perdido” de Milton. Ele diz que o livro consegue mostrar que a linguagem também sofre uma queda quando Adão e Eva são expulsos do paraíso. Antes as palavras eram límpidas e significavam coisas, conseguiam dar conta de toda a dimensão de um objeto, de um ser vivo, de emoções, enfim, de tudo que existe. Mas, depois da queda, elas perderam o referencial, se descolaram do Ser e se tornaram incompletas. Ele dá o exemplo de um guarda-chuva que mesmo depois de quebrado, ainda é usada a mesma palavra. Sua missão de vida seria resgatar essa ligação com o Ser, com Deus, retomar a substancialidade das palavras e criar uma nova linguagem.
A Torre de Babel marca outro ponto dessa queda dos homens. Ela havia sido construída capaz de chegar aos céus e suas dimensão eram praticamente inimagináveis para nós. Mas Deus, enxergando as reais intenções dos corações humanos, faz com que seus construtores falem línguas diferentes e não sejam capazes de se compreender, o que provoca falhas em sua construção e a dispersão da humanidade por toda a terra. Até aquele momento, mesmo falha, a linguagem era uma só, os homens eram capazes de se entender e buscavam todos o mesmo objetivo, mas, assim que as línguas se diferenciam, experiências são narradas de modo diferente e nada mais pôde ser unificado. Peter Stillman, o intelectual que almeja criar uma nova linguagem, entende que nesse momento, não bastasse a linguagem estar separada de Deus, ela ainda se diversificou, tornando mais distante ainda a compreensão da realidade.
A única saída para os homens seria essa reconstrução. E aqui é que a história entra no aspecto escatológico, que vai desencadear toda a ação. Como fazer com que a humanidade resolva seus problemas se a cada palavra existe um ruído que torna imprecisa não apenas a compreensão do que ouve, como o próprio entendimento daquele que está falando? A salvação só pode vir depois que esse vão entre as palavras e as coisas for desfeito. Não existe nenhuma forma de salvação que não encare esse problema. É por essa razão que ele decide isolar seu filho do mundo, trancando-o em um quarto para que não seja contaminado com a linguagem atual. Ele esperava que, livre do contato humano, pudesse emergir o pensamento puro, que o ajudaria a refazer esse caminho e salvar a humanidade. Mas seus planos foram frustrados porque a polícia libertou o menino e ele foi preso. Daniel Quinn, o escritor que perdeu a esposa e o filho e vive só, em NY, é acionado por engano para tentar proteger o filho de possíveis investidas do pai, já que ele será solto depois de vários anos na prisão. Esse é o mistério policial do livro, que tem um fundo filosófico muito interessante.
Agora, imagine o que significa esse projeto. De fato, a interpretação que Paul Auster coloca para o livro de Milton é muito pertinente. É fácil de perceber o desespero de Adão e Eva ao se afastar de Deus, o surgimento da dúvida em suas cabeças, a imprecisão que a escolha entre bem e mal a cada passo do caminho acarreta. Essa imprecisão é fruto do descolamento do homem em relação a Deus, pois onde antes havia sempre o Bem, agora existe uma escolha, sem a garantia dos resultados, porque se houvesse o conhecimento pleno do Bem e da Verdade, não existiria a necessidade de escolha. A partir dessa interpretação, o livre arbítrio soa como uma conseqüência da queda. E não tenho capacidade de resolver esse problema, claro, mas considero interessante de se pensar a partir dessa interpretação. Sei muito bem que Paulo, Agostinho e Tomás de Aquino lidaram com essas questões, mas não sei até que ponto o tema da imprecisão da linguagem aparece neles. No entanto, dentro do âmbito que Paul Auster define, o projeto de salvação da humanidade está fadado ao fracasso, pois em nenhum momento seu personagem pensa em retomar esse laço que o unia a Deus. Ele sonha exatamente como os criadores da torre sonharam, como se suas forças fossem capazes de afrontar Deus, desprezando toda a distância que nada mais é do que o pecado da desobediência, o pecado original.
Esse “esquecimento”, que caracteriza todos os projetos de salvação da humanidade ao longo de sua história, determina todo o restante. A verdade não pode ser alcançada enquanto essa separação existir, o que significa dizer que a humanidade jamais poderia construir uma linguagem pura e todo o restante necessário à salvação desmoronaria na seqüência, por não ter o lastro da verdade em sua origem. Ao homem, portanto, resta apenas o sentimento do vazio e essa vontade de se salvar, mas o amor ao pecado continua em cada coração. Eu gosto muito da maneira como esse livro dialoga com o de Milton, como se sondasse as possibilidades a partir do que foi deixado. E mostrando o quanto nossa missão é tola, porque ao assumirmos o fardo de nossa própria salvação, teríamos que saber restituir essa linguagem, essa capacidade de reconhecer a verdade completa, como era possível somente no paraíso, ou seja, um passo só aconteceria se houvesse o outro. Mas se conseguíssemos nos aproximar de Deus, não haveria mais a necessidade da salvação.
Essa é uma outra maneira de falar, usando termos diferentes, sobre as impossibilidades dos projetos revolucionários. Eles esbarram na apreensão da realidade, são incapazes de reconhecer as limitações do intelecto humano e, invariavelmente, todos que sonham com a salvação da humanidade, terminam escravizando até mesmo aqueles que amam. É como se, voltando aos termos de Milton, os projetos revolucionários conhecessem apenas a queda, e tivessem como lembrança da Verdade não ela mesma, mas o espaço que ocupava dentro de nós. E esse espaço, eles dizem, pode ser ocupado por qualquer coisa, uma vez que todas elas tem algo de verdade dentro de si. O que não é mentira, que fique claro, mas o problema está em que nós não somos capazes de perceber essa tal verdade e rapidamente a substituímos pelo efeito que desejamos que ela realize. Como se vê, mais uma vez o pensamento cristão estava à frente e explicou que todas as vezes que os homens buscassem a salvação por si mesmos, se fixariam nos efeitos e não seriam capazes de atentar para o que estavam colocando como salvação, quer dizer, idolatrariam qualquer coisa que pudessem colocar num altar.
Outro efeito que aparece dessa imprecisão, desta vez me limitando apenas à história, é a perda da identidade de Quinn. É muito lógico que dada a imprecisão da linguagem, já que ela falha em nomear até objetos simples, falharia também em relação às pessoas. Quinn já começa a história vivendo a confusão entre três nomes. Para cada um deles, uma personalidade. E, aos poucos, ele vai se apagando, conforme o caso se complica. No fim, evocando outro filósofo, resta apenas o pensamento como certeza de que ele existe. Tudo o mais está posto em dúvida, absolutamente tudo. Então, é o próprio pensar que lhe assegura que existe; não é necessário nem mesmo comer, basta continuar escrevendo. E, como uma espécie de brincadeira, mas muito séria, porque é como se Quinn tivesse perdido sua materialidade, o caderno que levava consigo simplesmente chega ao fim. O que resta, uma vez que tudo era somente pensar?