Vinicius.Dias 26/06/2023
O Velho Testamento era uma parada bem violenta.
Por mais que a pessoa não seja muito adepta de religiões, querendo ou não, uma grande parte da sua vida será influenciada diretamente por elas. No contexto brasileiro, isso fica ainda mais evidente em se tratando das religiões Cristãs. Além dos feriados e festividades religiosas, muito da ética e moral da nossa sociedade estão intrinsecamente ligados aos ensinamentos, costumes e maneirismos religiosos que vão passando de pai para filho. Desde o santinho na casa da avó à primeira comunhão, seguindo pela manutenção de dogmas e crenças no decorrer da vida, o brasileiro de uma forma ou de outra, sempre viveu sob o dedo - ou seria a mão inteira? - invisível da igreja, influenciando-os para o bem ou para o mal.
Pensamentos retrógrados, conservadorismo, preconceito, desinformação e manipulação das massas andam lado à lado com ações caridosas que ajudam a levar acalento e consolo para pessoas em necessidades físicas e espirituais. Ou seja, claramente percebe-se uma mistura de bondade e maldade sádica que constrange Cristãos bem intencionados por conta de uma parcela hipócrita e sem sinergia entre a prática e a Palavra ensinada.
Acontece que esse constrangimento sempre existiu, principalmente quando damos uma olhadinha em um livro bem antigo e que foi a principal base ética e moral que norteou e moldou os povos ocidentais contemporâneos: O Velho Testamento. Nele, Deus é apresentado como um grandioso de um sacana, vaidoso e sádico que não perdia a oportunidade de colocar suas ?ovelhinhas? em situações deploráveis, visando testar a força da fé de seus fiéis em si. Isso mudou drasticamente após Jesus aparecer e ajudar a construir uma nova narrativa que troca a ideia inicial de fé à partir do medo para a fé em nome do amor e esperança. O problema é que muito do estrago já havia sido feito, naturalizando a vingança e a violência como ferramentas validadas pelo próprio Deus.
A ideia dessa HQ é justamente apresentar algumas dessas histórias constrangedoras do Velho Testamento e escancarar o quanto viver a vida seguindo um livro cegamente pode te levar a cometer algumas atrocidades em nome do Divino. Assassinatos, estupros, esquartejamentos, vingança, dizimação de povos e cidades inteiras, pragas, sacrifícios humanos e maldições são só algumas das coisas que você encontrará nessa publicação. Claro que em algumas delas os roteiristas e desenhistas tomaram alguma liberdade criativa e trouxeram um tom humorístico para suas historinhas, mas em momento algum mentiram. O bom e velho: A gente aumenta mas não inventa.
Você encontrará nessa HQ algumas histórias bem conhecidas e outras nem tanto assim. Vai acompanhar o sofrimento de Sansão quando Dalila cortou o seu cabelo, ajudar Adão e Eva a cuidar do jardim enquanto uma figura bem conhecida sai para ajudar a resolver um probleminha na Terra Média, entender as motivações por trás da destruição de Sodoma e Gomorra, ter sua fé testada junto de Jó e também conhecerá vários juízes importantes na libertação do povo de Jerusalém das mãos de outros povos escravocratas. Tudo isso em meio a decisões questionáveis, aplicação do código de Hamurabi (olho por olho e dente por dente), muito ódio no coração, rios de sangue dos inimigos e, o mais importante, bençãos de Deus.
Ainda falando sobre a publicação, ela é inédita no Brasil, apesar de ter sido lançada a mais tempo. Nela tem um time de roteiristas de peso: Neil Gaiman, Alan Moore e Brian Bolland são só alguns deles. Vale citar também que cada um dos quadrinhos foi desenhado por uma profissional diferente, o que trouxe para a HQ uma gama de técnicas e traços distintos, engrandecendo ainda mais o material. De negativo, acho que algumas decisões editoriais não foram muito acertadas. Apesar da capa dura, o papel não é dos melhores e, além disso, em alguns momentos os quadros e balões ficaram tão apertados e confusos que quase não deu pra ler o que estava escrito. Levando em consideração o ineditismo do lançamento, o nome das pessoas envolvidas e por ser um tema bem interessante, cabia um pouco mais de investimento em qualidade.
Não que eu seja um profundo conhecedor do que está dentro da Bíblia (muito pelo contrário), mas achei que foi um passatempo legal e que me gerou muita curiosidade sobre temas e personagens que eu nunca havia ouvido falar antes. Talvez se eu já conhecesse essas histórias, a leitura poderia ter sido ainda mais proveitosa. De qualquer forma, nada como questionar religiões alheias e esfregar certas hipocrisias na cara de seus fiéis. Então, se você é desses que como eu adora uma blasfêmia seguida de um dedo na ferida, pode gostar dessa HQ. Caso seja um bom Cristão, talvez seja uma leitura mais dura, porém libertadora. Isso vai depender do quanto você está disposto a receber críticas sobre certos comportamentos esquisitos (pra dizer o mínimo) contidos no livro que ajudou a moldar os povos ocidentais como os são.
"Foi estupro, matança, assassinato e sequestro por atacado! Ordenado. Ah, aprovado por Deus pra compensar um outro estupro e assassinato deploráveis." - O Velho Guardião da Bíblia