Renan Barcelos 23/02/2016
Uma Boa Ideia Mau Executada
Inspirada em histórias como Mad Max, Warriors e Fuga de Nova York, a HQ Apagão: Cidade sem Luz busca trazer um pouco dessas distopias sociais ao cenário urbano de São Paulo. Com roteiro de Raphael Fernandes, editor da MAD e roteirista veterano, e com arte de Camaleão, capista da MAD, a obra aborda uma São Paulo caótica e depredada, que sedia a violência de diversas gangues desde que a luz elétrica deixou de funcionar e o caos tomou conta da sociedade. Uma proposta certamente semelhante a outras abordagens, mas possui toques de originalidade, além de trazer para um cenário brasileiro alguns temas recorrentes na cultura pop. Infelizmente, no entanto, o que parecia a promessa de uma história com uma premissa interessante e próxima do leitor brasileiro acaba sendo mal utilizada pelo seu roteiro fraco.
Apagão começa bem. A HQ abre mostrando uma cena de violência que passou a ser comum em São Paulo. Logo é mostrado um embate entre gangues. Neonazistas com direito até a uniforme para seu “oficial” tentam matar uma dupla de prostitutas, mas são impedidos pelos Macacos Urbanos, a gangue de capoeiristas e praticantes de Parkour que co-protagoniza a trama. Com muita violência gráfica e verbal, de forma muito adequada para a história, é preciso dizer, fica claro tanto o tom quanto o tema de Apagão, mostrando logo que apesar do ato de aparente altruísmo, nesse panorama não existe espaço para heróis.
A obra começa a desandar na cena seguinte, quando Dori é apresentado. O personagem é um ex-blogueiro que vive escondido com sua irmã Bia, tentando levar uma vida longe do caos que se tornou a cidade. No entanto, Dori é tão desconexo com a realidade, agindo e se expressando de forma tão caricata e inverossímil, que sua presença logo contrasta com o que havia sido estabelecido para a HQ tanto na primeira cena quanto na propaganda. É verdade que o resto dos personagens percebem o blogueiro com a mesma incredulidade do leitor, o tratando até mesmo com violência, mas a presença dele na história não deixa de ser um tanto quanto amarga, quebrando as expectativas iniciadas na primeira cena.
Ficasse Dori apenas como um alívio cômico passageiro, sua presença poderia até ser relevada. No entanto, a história se foca num destino místico pressagiado pelo mentor dos Macacos Urbanos, o mestre Apoema, de que o blogueiro será importante para o grupo. Então a trama passa a seguir Dori e sua busca para resgatar Beatriz, sua irmã, que acabou sendo sequestrada por membros de um culto evangélico, mostrando o desenvolvimento de suas capacidades e a forma como lida com as ruas de São Paulo. Essas mudanças, no entanto, são apressadas e mal trabalhadas. Só colaboram para deixar o blogueiro um personagem ainda mais forçado.
O problema em si não são os elementos que Apagão aborda. Uma gangue de praticantes de capoeira e parkour foi uma excelente ideia e o misticismo colocado na história combina com isso. As outras gangues também, baseadas em tribos urbanas e linhas de pensamento atuais, foram criadas de forma interessante, isso sem falar na situação da polícia e da igreja evangélica, comandada por um pastor psicótico, que é o ponto alto da história. Contudo, a presença desses elementos se perde, pois nenhum deles é explorado e desenvolvido de forma a beneficiar a história. Quando chega ao final, é lançado um plot twist ao leitor, uma promessa de que a HQ continuará. Mas a forma precária como a história foi apresentada faz com que não haja interesse nenhum na revelação, porque não é possível se importar e se apegar a nenhum dos personagens.
Existem sim méritos na obra. A forma como as mudanças em São Paulo foram pensadas é interessante e a estética escolhida para a ambientação ficou muito apropriada, passando as imagens certas. É notável o esforço para fazer da cidade um lugar reconhecível, apesar de parcialmente destruído e imerso no caos - uma preocupação importante, já que são limitadas as obras de entretenimento ambientadas no Brasil. É preciso elogiar também a arte de Camaleão. Apesar de algumas expressões dos personagens estarem muito exageradas e caricatas demais para o tema, os conceitos deles e dos cenários ficaram muito bons. Passam toda a sensação de uma grande metrópole. Infelizmente, tudo o que tem de bom e interessante é desperdiçado no roteiro fraco e sem sal.
No fim das contas, Apagão é uma obra com um grande potencial desperdiçado. É preciso saudar a iniciativa, principalmente após uma campanha bem sucedida em financiamento coletivo, mas na mesma medida, os vários problemas da HQ precisam ser expostos. Talvez ela tenha padecido da falta de recursos e da necessidade de se fazer uma história sucinta, mas de forma alguma conseguiu apresentar um roteiro compatível com o seu tamanho, apenas 96 páginas. Resta esperar que futuras publicações apresentem um enredo melhor amarrado e que consigam atingir o leitor, porque, em sua primeira edição, Apagão – Cidade Sem Luz, não faz por merecer.
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