Não é exagero dizer que Luize Valente - voz referencial do romance histórico contemporâneo no Brasil - enreda de tal forma o leitor nesta trama que ele de súbito, ainda no início, vê-se saborosa e irremediavelmente preso ao livro, perseguidor fanático de seu final.
São poucos os escritores capazes, hoje, de manejar o tempo - o ir e vir seguro em quase um século - como Luize. Com prosa ágil e visual, e amplo domínio da técnica, a autora - cuja obra de estreia, O Segredo do Oratório, já causara forte impressão, sucesso de crítica e público - honra e supera a expectativa acerca deste segundo livro, ao conceber aqui uma narrativa que costura capítulos curtos e dinâmicos de maneira que tenham desfechos instigantes, que progressivamente amarram o leitor em novas e ainda maiores dúvidas, ansiedades e urgências.
Difícil parar de ler.
Entretenimento de fina qualidade, este romance desafia e vence - com sobras - a tendência corrente (cafona e aborrecida) segundo a qual diversão é incompatível com literatura. E que personagens! Dentre um punhado de figuras inesquecíveis, temos Olivia e Clarice, enormes, gêmeas cuja união fraternal resultará em que afinal sejam - só a leitura revelará como - uma só pessoa. O modo, aliás, como o parto delas é tecido - com a mãe morta - alcança o estado da arte e emociona como sói à grande literatura. E eu poderia encher este texto com exemplos.
A compor - tão ambicioso quanto plenamente realizado - o projeto literário de Luize Valente, impõe-se a reconstituição da desgraça imposta pelo nazismo aos judeus na Europa, razão pela qual muitos deles viriam fazer a vida no Brasil. A literatura de Luize - o modo original como ergue sua carreira autoral até aqui - é, aliás, alicerçada ao mesmo tempo na memória acumulada de séculos de um povo e na identidade brasileira que a comunidade judaica soube construir para si neste país. É impressionante, registre-se, a forma como a escritora retrata a chaga do nazismo na miudeza do cotidiano, na intimidade das famílias alemãs e europeias, com bárbaros desdobramentos em Portugal, no lar de Clarice e Olivia, de onde a narrativa parte pra ganhar o mundo e o Brasil.
O que temos aqui é uma grande história, escrita sob a luz do admirável engenho criativo - tudo isso sobre o solo firme de consistente pesquisa e de poderoso conhecimento histórico. É o que explica o caráter orgânico deste romance, em que nada é artificial.
Se o leitor procura uma história forte e universal, com personagens - de construção só possível por quem percebe e compreende o humano - pelos quais se envolver, narrada século adentro com ritmo cinematográfico, este Uma Praça em Antuérpia é o livro.
Literatura Brasileira / Romance