Romancista, poeta, ensaísta, colunista, autor de versos reproduzidos em músicas de todo o mundo, vinte anos exilado de sua terra, o uruguaio Mario Benedetti regressa à sua paisagem, à sua gente, ao seu solo. O que viu, o que recordou, nessa nostalgia montevideana, nesses selos de cor sépia, está neste romance, A borra do café. Um inventário de pequenas sensações, uma galeria de imagens insignificantes, um elenco de seres cinzentos, enfim, um terno, lírico e suavemente irônico olhar para trás, nesse abraço do tango do qual nos fala em uma das mais belas páginas deste belo livro.
No tango, explica-nos Benedetti, diferentemente de outros tipos de dança, que só produzem contatos fugazes, é impossível que dois corpos, reconhecendo-se, recorrendo-se, não acabem por encontrar-se; por isso o tango é comunicação. É isso que faz o uruguaio em seu livro: agarra-se ao passado como se fosse a vida em si, e o faz, metaforicamente, sem sair desse exílio em que vive e que nunca abandona.
Para fugir de uma autobiografia fácil (e como não imaginarmos Benedetti nesse protagonista), Benedetti inventa Claudio, um menino de sua idade, que percorre, em sua iniciação adolescente, em sua puberdade, os bairros de Montevidéu, graças à mobilidade doméstica da família, que mudava de lugar constantemente, o que permite criar um variado microcosmo em que fatos como a bomba de Nagasaki têm a mesma importância narrativa que a sorte de Claudio na roleta.
São fatos cotidianos de Montevidéu, fáceis mas não simples, transparentes mas não vazios, líricos mas não piegas, e todos eles contados com a poesia que é característica de sua obra narrativa. Para dissimular a forte tentação realista deste livro, inventa um amor sonhado ou imaginado e toda uma obsessão superticiosa pelos números 3 e 10. Tão envolvente quanto Rita, o amor que vai e vem, há o humor e a simplicidade de Juliska, a "iugo", a "iugolar", a cozinheira iugoslava atrapalhada com o idioma adotivo.
A borra do café transmite otimismo, é cálido e intranscendente. É um livro nada complicado, nada rebuscado, nada pretensioso. É, enfim, um desses livros que se tem que ler, não por nada, mas apenas porque sim, o que não é pouco.
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