A estrela da manhã

A estrela da manhã Michael Löwy


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A estrela da manhã


Surrealismo e marxismo




Michael Löwy retorna ao romantismo revolucionário de Walter Benjamin e de Guy Debord, assinalando suas ligações com o surrealismo e o marxismo libertário. Para o autor, foi a partir dos trabalhos desses pensadores que o romantismo deixou de ser visto como uma corrente da cultura do século XIX e passou a ser entendido como uma estrutura mental inerente à própria modernidade - surgida com a Revolução Industrial e que perdura até hoje - e que por essência é anticapitalista. Demonstrando o inegável parentesco dos românticos revolucionários com os movimentos culturais de vanguarda - o surrealismo visto como uma 'cauda do cometa' romântico. Löwy retoma o radicalismo subversivo dos surrealistas para agitar o estado de insubmissão, de negativismo, de revolta que tira sua força positiva erótica e poética das profundezas cristalinas do inconsciente, dos abismos do desejo, do poço mágico do princípio do prazer, das músicas incandescentes da imaginação.
Saiu na Imprensa:

O Globo / Data: 1/6/2003
Surrealismo: a cauda do cometa ainda brilha
Gustavo Bernardo

O surrealismo não é bem uma escola literária. É melhor defini-lo como uma tentativa subversiva de re-encantamento do mundo. Sua matriz é romântica, entendendo-se o romantismo como um protesto de dentro do capitalismo contra ele mesmo: no dizer de Breton, o surrealismo é a cauda do cometa da visão romântica do mundo. Costuma-se datar seu começo em 1924 e seu final em 1969, mas o autor desse livro discorda veementemente que a aventura surrealista já tenha se encerrado. Como continuamos vivendo em um mundo transformado numa gaiola de aço (ou seja, numa estrutura alienante que nos coisifica e assim nos encarcera), o surrealismo continuaria sendo necessário para romper as grades da gaiola.

Isso é o que Michael Löwy procura demonstrar nos ensaios do seu livro. O livro foi escrito originalmente em francês, porque Löwy trabalha em Paris como diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique, mas seu autor nasceu no Brasil em 1938. Estudou ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP) e doutorou-se na Sorbonne. Crítico feroz da globalização, aqui ele estuda as afinidades eletivas dos fundadores do movimento, particularmente André Breton e Benjamin Péret, com os marxistas e os anarquistas, que de modo diferente mas complementar também contestam a ordem burguesa estabelecida. Para reafirmar a continuidade do movimento, o livro é ilustrado com várias obras recentes de surrealistas de diversos países do mundo.

O volume conta ainda com a história do surrealismo no Brasil, da década de 20 aos dias de hoje, escrita pelo poeta Sergio Lima. O anexo é importante porque, ao lado de Paris, Praga, Estocolmo, Madri e Chicago, a cidade de São Paulo mantém um grupo surrealista ativo.

O título do livro remete a uma alegoria de Breton: a estrela da manhã, caída da fronte de Lúcifer, seria a expressão suprema do pensamento romântico, representando a insubmissão. A revolta e somente a revolta poderia ser criadora de luz, luz esta que não pode ser conhecida senão por três vias: a poesia, a liberdade e o amor. O apoio na luz de Lúcifer não é casual: o surrealismo procura o mito para voltá-lo contra as religiões estabelecidas, cujos dogmas ajudam a prender os arames daquela gaiola de aço. Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire começaram a engendrar o surrealismo a partir de uma revolta amarga e apaixonada contra o catolicismo. Nesse sentido o surrealismo estaria mais próximo do anarquismo do que do marxismo, como demonstra a emoção que Breton sentiu quando criança ao descobrir no cemitério um túmulo com uma inscrição simples e corajosa (levando em conta o lugar em que estava): “Nem Deus nem Mestre”.

Além de Breton e Péret (que teve passagem significativa pelo Brasil), Löwy estuda o pensamento de Walter Benjamin, Pierre Naville, Vicent Bounoure e Guy Debord, buscando estreitar as relações entre surrealismo e marxismo pela ótica da revolta legítima. As “orelhas” do livro, assinadas por Leandro Konder, reforçam este objetivo, mostrando a necessidade da arte para a luta política (e vice-versa). A leitura atesta a generosidade desse pensamento, mostrando corretamente a relação do romantismo não apenas com o surrealismo mas também com o marxismo.

No entanto, as contradições inerentes ao romantismo afetam todos esses campos. Assim como a revolta romântica contra o capitalismo de que nasce traveste-se muitas vezes da saudade de um passado idílico e honroso que talvez nunca tenha existido, a revolta marxista contra o mesmo capitalismo de que também nasceu traveste-se outras tantas vezes de apegos passadistas que dificultam a própria luta política, como o mostraram os acontecimentos do socialismo “real”. A teoria marxista é apta para lidar bem com essas contradições, como mostra a obra de Löwy e, no Brasil, de Leandro Konder, mas cabe assinalá-las para passar à crítica do trabalho do sociólogo franco-brasileiro.

Os ensaios de “A estrela da manhã” demonstram empolgação irrestrita com aquilo de que tratam, mas isso pode ser tanto qualidade quanto defeito. Por um lado a empolgação autêntica e generosa é um refresco muito bem-vindo nos tempos da fria racionalidade instrumental, em que o cinismo oportunista (bem diferente do cinismo de Diógenes) se tornou estratégia de sobrevivência que torna o viver apenas isso: um mero sobreviver. Por outro lado, porém, a empolgação tende a vestir antolhos e considerar a si mesma absolutamente genial, desprezando todas as outras maneiras de estar no mundo — a arrogância de Guy Debord (que se considerava o único indivíduo livre em uma sociedade de escravos) e dos apocalípticos que o seguiram exemplifica esta situação.

Falta muitas vezes aos movimentos de revolta (política, estética ou religiosa) um mínimo de ironia que os proteja ao menos de si mesmos. A ironia também está presente no romantismo, é verdade — mas principalmente no romantismo alemão, não no francês. Sem ironia e auto-ironia, a revolta transforma-se em indignação santa que por sua vez provoca cruzadas santas contra não apenas os inimigos do povo e da arte mas também contra os amigos que tenham preservado um pouco de ironia e de desconfiança quanto aos grandes combates.

Löwy sabe disso quando recorre a uma expressão paradoxal para aproximar Walter Benjamin de Pierre Naville: “pessimismo revolucionário”. A expressão é paradoxal porque pessimismo implica uma certa inércia que não combina com revolução. Nesse sentido a expressão é muito boa; ela rejeita a confiança irrestrita no curso natural da História que levaria irrevogavelmente à vitória da revolução. Na bela frase de Löwy: “Não é a crença teleológica em um triunfo rápido e certo que motiva o revolucionário, mas a convicção profundamente enraizada de que não se pode viver como um ser humano digno desse nome sem combater com pertinácia e vontade inabalável a ordem estabelecida”.

Michael Löwy compara os surrealistas aos cangaceiros

Sim, a frase é bela e no fundamental correta, mas contém um adjetivo mal encaixado: dizer que a vontade deve ser “inabalável” (e que não se é digno se a vontade não for “inabalável”) implica retornar a uma concepção heróica da existência que se encontra a um pequeno passo de concepções totalitárias e excludentes de política e de estética. Não à toa os surrealistas são comparados, no último parágrafo de Löwy, aos cangaceiros, “os bandidos de honra dos sertões brasileiros”. Como os cangaceiros, inclusive Riobaldo, o narrador de “Grande sertão: Veredas”, foram, além de honrados, assassinos e estupradores, não fazendo nada tão diferente assim das milícias que os perseguiam, talvez tenhamos alguma razão em ter medo de qualquer tipo de herói.

Adjetivos e verbos grandiloqüentes como aquele (por exemplo, a obra dos surrealistas sempre “resplandece”) infelizmente se multiplicam nos ensaios do sociólogo, enfraquecendo sua argumentação. Mas como o livro é de fato muito importante, pelas informações que traz e pela empolgação que demonstra, cabe uma leitura seletiva, relevando esses termos com um sorriso enquanto se usufrui do pensamento generoso de Michael Löwy.

Sobre o autor:

LOWY, MICHAEL
Michael Lowy nasceu no Brasil e vive na França desde 1969, onde é Diretor de Pesquisa do CNRS (Paris). Entre outras obras, organizaou o livro 'O Marxismo na América Latina'.

Artes / Filosofia

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