Num planalto isolado da Albânia, a lei sangrenta do Kanun (de cânone) é uma realidade que se apurou em séculos de prática. É o gesto de resgate do sangue de Agamémnon por Orestes democratizado, saído dos palcos das tragédias gregas para os campos pobres dos Balcãs. À lei do Estado e de Deus sobrepõe-se esse código consuetudinário, minucioso sem margem para o livre arbítrio, que não deixa nada ao acaso e impõe uma conduta de honra e dignidade num quadro absurdo e sanguinário. Quem mata alguém de um clã, resgatando o sangue derramado de um membro do seu clã, começa a usar um fumo preto anunciando que está condenado à morte às mãos de alguém que, consumada a vingança, ficará por sua vez na mira da morte. Instala-se uma relação entre os vivos e quem está vivo mas já vive no reino do Além, por ter a morte decidida pela tradição. O fulgor e a especulação intelectual das tragédias gregas entram para a realidade comezinha desse quotidiano, onde o destino escrito nas tábuas de uma lei não escrita tanto eleva os homens acima dos homens como os precipita no abismo.
“Abril Despedaçado” é a história do fascínio que esse mundo exerce sobre um jovem casal de intelectuais procurando entender o que resiste a qualquer análise racional, enquanto o seu casamento é vitima dessa busca. É o sortilégio da maldição narrado com extrema mestria por Ismael Kadaré
Literatura Estrangeira / Ficção