Alhos & Bugalhos

Talvez o autor nem se tenha dado conta de quanto este livro esconde sob o título despretensioso e modesto uma verdadeira suma do sentido de toda a sua obra. Cada um desses ensaios de Gilberto Freyre, reunidos agora pela primeira vez, configura-se como elemento significativo de temas seus, temas peculiarmente "gilbertianos", que fazem parte da estrutura científica, literária e artística da sua obra.

Temas de sociologia ou psicologia, como, aqui, o estudo originalíssimo sobre informação, comunicação e cartão-postal — sobre como reagiam os imigrantes europeus do princípio do século ao meio amazônico, ao calor tropical, à aventura em ambiente tão diferente do seu habitual.

Obra de sociologia. Mas também de história ou de psicologia a partir de dados novos, reveladores: seria Karl Marx um gênio literário desviado de sua vocação? Responde Gilberto Freyre em outro ensaio: Marx poderia ter-se tornado quase um novo Tolstoi "realizando-se literariamente através de uma novela que fixasse como tipos existenciais, personalizados portanto, o burguês e o operário".

Temas de literatura e arte: seus ensaios sobre artes e letras brasileiramente regionais vêm carregados de novas abordagens e reflexões sobre a língua e a linguagem, examinando, por exemplo, com a sua habitual singularidade criadora, a relação entre poesia e voz.

Ou o ânimo folclórico no comportamento e na cultura do brasileiro, em que pela primeira vez se estuda a familiaridade luso-brasileira com santos e heróis, pioneiros ou líderes políticos, venerando-os e simultaneamente pilheriando com eles, a peculiaríssima intimidade dos mortais com os imortais e, por aí, o sentido mágico, mítico, da cultura brasileira, o folclore funcionando também como mediador entre religiões cristãs e não-cristãs.

E, ainda, os temas especificamente literários, colocados em pautas sobretudo existenciais, bem à maneira de Gilberto Freyre: o confronto entre as literaturas brasileira e norte-americana, a interseção literatura-política no Brasil, a tradução do *Ulysses*, de Joyce, para a nossa língua, ou, ainda, as páginas confessionais, mas isentas, crítica e autocrítica, polêmica e ensaio, de um outro destes estudos: "Serei um escritor obsceno?".

Por essa breve apresentação, vê-se que nesses *Alhos e Bugalhos* há um pouco — um pouco que é muito — de tudo o que se tornou *Casa Grande e Senzala*, *Sobrados e Mocambos*, *Nordeste*, *O mundo que o português criou*, e outros, um monumento de cultura mais enraizadamente brasileira. No microcosmo que são esses *Alhos e Bugalhos*, cabem toda a impetuosidade do pensamento, a sensualidade da escritura, a acuidade requintadamente filigranada do debruçar-se apaixonadamente sobre tudo e todos, que apontam ainda uma vez, em Gilberto Freyre, aquilo que ele jamais deixou de ser: um dos mais vigorosos escritores que nossa língua já produziu.

Ensaios / História do Brasil / Literatura Brasileira