«É meia-noite, em fundo toca Bela Lugosi’s Dead, do grupo Nouvelle Vague, e nem sequer a música me impede de pensar nessa realidade “bárbara, brutal, muda, sem significado, das coisas” de que falava Ortega. Olho pela janela e vejo a vida inerte, e parece-me que esse tipo de realidade bárbara e muda é especialmente percebida hoje por quem – como já Musil pensava – acha que no mundo não existe já a simplicidade inerente à ordem narrativa, essa ordem simples que consiste em poder dizer às vezes: “Depois de aquilo ter acontecido aconteceu isto, e depois aconteceu outra coisa, etecetera”.
Tranquiliza-nos a simples sequência, a ilusória sucessão de factos. No entanto, há uma grande divergência entre uma confortável narração e a realidade brutal do mundo. “Tudo se tornou agora narrativo”, dizia Musil, frequentador de um universo multidimensional, fragmentário, de um mundo sem possibilidades reais de aceder a uma ordem como a que por acaso alguma vez poderia ter existido e que Rilke pensou entrever em As Anotações de Malte Laurids Brigge: “Que se narrasse, o que se diz narrar, isso deve ter-se feito noutros tempos. Eu nunca ouvi ninguém narrar.»
Ensaios / Literatura Estrangeira