Alexandre Guarnieri escreveu um épico sem reis. Mesmo o herói não o é: apenas o corpo é uma possibilidade heroica. Em Corpo de Festim (2014, Confraria do Vento), tudo é apenas possibilidade. Se o corpo e a palavra são de festim (o corpo é esvaziado de corpo e é construído sobre as palavras, enquanto estas se esforçam para ser aquele), também a epopeia é um receptáculo em que um corpo qualquer pode ser narrado. A impossibilidade real da epopeia está somatizada (corporificada) nos sinais de pontuação, que já não pontuam, mas funcionam como hieróglifos sem aura, onde o papel do iniciado está disponível para qualquer não-iniciado. O que se narra é a saga do átomo de carbono às práticas de vigilância e punição sobre o corpo. O corpo se torna, simultaneamente, em seu livro, o mais ancestral dos povos, e o povo que virá – mesmo que sejam povos doentes. “A origem teria sido o primeiro choro / desde recém-nascido, daí a progressão irrefreada até o último / suspiro (quando fosse lida a última página do seu livro / da vida), interrompido para sempre o ritmo, d’algum / paciente anônimo ( crônico ) domiciliado em leito terminal.” A doença em Corpo de Festim não é um corpo estranho, mas uma das condições do corpo mesmo. Como outrora na epopeia o destino de todo um povo se personificava em reis, em Guarnieri há essa enteléquia da vida contida numa única partícula. (Rafael Zacca)
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