Em 'A infância de Jesus', J.M. Coetzee imagina um país de estrangeiros que, depois de atravessar o oceano, pagam com o esquecimento da própria trajetória a oportunidade de começar uma vida nova. A condição de estrangeiro também impõe uma língua nova, no caso, um espanhol adquirido precariamente e que ninguém domina por completo. O leitor é guiado pelo olhar de Simón, recém-chegado que se atribui o papel de guardião de um menino de cinco anos e vai trabalhar como estivador, carregando sacos de grãos de trigo. A subsistência - o simples sustento pelo pão de cada dia - parece ser a única finalidade à qual se dirige a rotina do lugar, onde todos parecem se conformar, não só no que diz respeito à alimentação, a uma dieta moderada. Inadaptado e insatisfeito, ainda que ansioso por compreender e ser aceito, Simón tenta fazer valer os direitos de alguém cujo corpo continua impregnado de memórias. Nascido numa família africânder que usava o inglês dentro de casa, Coetzee fez do desconforto linguístico um dos temas de sua ficção. É com esse sentido de estranhamento que Simón trava debates filosóficos com os camaradas, na 'ágora' da estiva, e faz o possível para explicar às mulheres um dos fatos mais básicos (e misteriosos) da vida - o desejo. Cuidando da criança que um acidente lhe confiou e se lançando numa peculiar missão em nome dela, esse homem estabelece vínculos através dos quais a vida em família e a afetividade são expressas em sua face mais estranha.
Ficção / Literatura Estrangeira