As Piedosas

As Piedosas Federico Andahazi


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As Piedosas





John William Polidori é médico de formação, lá na Inglaterra do século 19. Mas, por conta das circunstâncias, seu ganha-pão é mesmo ser secretário do famoso escritor Lord Byron.

O ano é 1816 e o dr. Polidori vai acompanhar o patrão e três amigos seus em umas férias de verão na Vila Diodati, Genebra. Naquela ocasião, o verão é atípico, com chuva muita e muita trovoada.

As companhias de Byron são Percy e Mary Shelley e Claire Clairmont. Polidori odeia todos. É um frustrado, no fundo. Odeia inclusive a Byron, o qual, mais que odiar, inveja. Quer ser um escritor tão bom quanto o patrão, mas não consegue pôr uma palavra sequer no papel. Para essa incompetência, tem uma desculpa pronta, segundo o narrador: “Por que um espírito como o seu, habitante das alturas do mundo das idéias, tinha que rebaixar-se à planície do papel?”. Então tá.

Na Vila Diodati, logo na primeira noite de estadia do quinteto, Polidori, antes mesmo de deitar-se, vê sobre a mesa de seu quarto uma carta. Coisa estranha, pois é sabido que as correspondências não alcançam aquela isolada residência. A carta é de Annette Legrand, que se identifica como irmã das outrora jovens e belas gêmeas Babette e Colette, figuras de histórico longe de casto e bastante comentado por toda a Europa. Só que o mundo, com exceção das gêmeas e, agora, de Polidori, não sabe da existência de Annette. Que informa viver na montanha oposta àquela onde está a casa que hospeda Byron e companhia. E informa também Annette ser um… monstro. Isso mesmo. Ela é produto de resíduos que os corpos de suas belas irmãs liberaram lá no ventre materno. Em uma missiva, escreve o monstro: “Não me deterei em tentar uma humilhante descrição de minha pessoa; basta que imagines o ser mais horroroso que vos foi dado ver e logo multiplique por cem aquele quantum de feiúra”.

Polidori, fato inescapável, sabe do que lhe é contado. Quando estudante de medicina, um professor de patologia certa vez levou sua turma para um tal Abnormal Circus,

em cujos sórdidos subsolos havia tido o macabro privilégio de presenciar o mais espantoso desfile: estaturas mínimas, corcundas como montanhas, garras ao invés de unhas, órbitas oculares vazias, braços e pernas amputados ou simplesmente faltando, grunhidos de fera, risos enlouquecidos, lamentos surdos, choros dilacerantes, pestilências desconhecidas, cabeças incomensuráveis, súplicas de piedade.

Seres mal-formados, que portanto não tinham direito a um tratamento humano, sequer a um tratamento do tipo que é dispensado a cachorros e bois. São a expiação da humanidade, torturados. O professor de Polidori se divertiu no Abnormal, mas não Polidori, que se compadeceu das criaturas.

E Annette, ao entrar em contato justo com ele, tinha que saber desse seu passado, não? Mas como? Bem, ela sabe, apenas.

As piedosas (Cia. das Letras, 1998), do argentino Andahazi tem, como você já percebeu, algo do gênero gótico. Terror - com todos os lugares-comuns a que tem direito. Boa parte do livro consiste na leitura por Polidori das correspondências que Annette deixa durante a noite no quarto dele, sub-repticiamente. Afinal, é um monstro, e não quer espantar seu destinatário, de quem, informa, necessita algo de que depende sua (dela) vida. Em troca, promete fazer algo que, ela sabe, Polidori muito anseia.

Quais são esses dois algos é um dos mistérios do livro, sobre os quais você começará a intuir logo que penetrar nas cartas de Annette. Pelas quais ficamos sabendo que quando, em Paris, ela “nasceu”, caída de entre o corpo das irmãs, o pai, que foi o parteiro, ao ver no chão alagado aquilo a que se referiu em carta não-enviada a um amigo (e que Annette resgatou numa lata de lixo) como “essa coisa horrenda”, “esse fenômeno”, tentou matá-la afogada. No entanto, enquanto a coisa agonizava entre o chão e seu pé, o pai viu que as duas crianças que tinha nos braços também não conseguiam respirar. Ou seja, ali e para sempre a vida das duas belas gêmeas diretamente dependiam da sorte de Annette. Que passa a sobreviver nos subsolos da casa da família, primeiro, e depois também nos subterrâneos de Paris, pelos quais tem acesso a velhas bibliotecas, onde literalmente come os livros, a exemplo das ratazanas, e, ao contrário destas, depois de lê-los.

Pronto, já dei pistas demais sobre os “algos” acima citados. Vamos deixar que Polidori conheça mais a Annette e descubra o que terá que dar para receber seja lá o quê. Leia a obra, a diversão é garantida. Tem até um humor despretensioso e bem bolado. Por exemplo, depois de informar a Polidori de seu hábito de comer livros, Annette observa: “Como haveis de inferir, não tenho a virtude da releitura”.


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Eu adorei ler este livro! A leitura é rápida, pois o livro é curto e divido em breves capítulos e é de caráter epistolar (cartas) e é muito misterioso, assustador e as vezes até sensual. Gostei muito de ver Lord Byron e Mary Shelley sob o ângulo apresentado pelo autor desta obra. Amei a atmosfera gótica descrita e os sentimentos monstruosos típicos do ser humano. Apesar de ser extrema ficção, devo dizer que é uma história esplêndida e com certeza merece muito mais reconhecido do que o ... leia mais

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Raquel Lima
cadastrou em:
16/01/2009 11:12:23

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