William Shakespeare "inventou o humano", na feliz expressão de Harold Bloom, porque as peças do bardo expressam os dilemas intemporais da nossa condição terrena. Fernando Pessoa (re)inventou esse humano, resgatando tais dilemas de um mundo aristocrático para a existência anônima e solitária do homem comum. Ao escrever esta espécie de autobiografia espiritual de Bernardo Soares, seu "semi-heterônimo", Pessoa legou-nos o retrato estilhaçado de nós próprios, perpetuamente submetidos a uma "vida vegetativa de suposição", que não é um exclusivo de príncipes da Dinamarca. Ser ou não ser; fazer ou não fazer; desejar o que não se pode desejar; contemplar o tempo, implorando para que ele passe mais depressa e mais devagar; temer a solidão e temer a companhia dos homens; dizer a verdade com mentira ou a mentira com a verdade; amar o tédio com a mesma intensidade com que fugimos dele - O livro do desassossego, em rigor, não é um livro. É um puzzle inacabado e inacabável como a vida que temos e nunca teremos. João Pereira Coutinho Professor e colunista da Folha
Ensaios / Literatura Estrangeira