spoiler visualizarKatharina.Pedrosa 20/01/2024
E se as pessoas parassem de enxergar?
A cidade é repentinamente tomada por um evento extraordinário e inexplicável: todos os habitantes começam a perder a visão, mas de uma maneira peculiar, passando a enxergar um mar de leite. A cegueira se manifesta gradualmente, inicialmente afetando alguns indivíduos aqui e ali. Entretanto, ao longo das páginas, fica evidente que essas pessoas já estavam interconectadas de alguma forma por meio de um oftalmologista. No primeiro grupo, todos os personagens tiveram contato direto ou indireto com esse médico, levando à inicial suposição de que a cegueira branca era contagiosa. Surpreendentemente, a esposa do médico é a única pessoa imune a esse mal.
Diante desse caos, o governo decide enviar os primeiros infectados para um sanatório abandonado, onde ficam isolados em quarentena, porém em condições precárias, sem saneamento básico e higiene. A esposa do médico decide fingir cegueira para acompanhar o marido, tornando-se os "olhos" daqueles privados da visão. À medida que o segundo grupo de pessoas chega ao sanatório, incluindo um homem que já era cego antes da epidemia e se destaca por saber ler e escrever em braille, conhecido como o "cego contabilista".
O sanatório é controlado por militares, encarregados de abrir portas para a entrada de alimentos. No entanto, no segundo grupo, alguns homens aproveitam-se da vulnerabilidade do primeiro grupo, decidindo que os cegos precisam pagar pela comida. Isso leva à perda de pertences e, eventualmente, à utilização das mulheres como moeda de troca devido à escassez de recursos.
Enquanto isso, do lado de fora do sanatório, mais pessoas começam a perder a visão, inclusive membros do governo, que gradualmente deixam de existir. As ruas se enchem de milhares de pessoas cegas e desorientadas, incapazes de encontrar o caminho de volta para casa após a perda da visão. Supermercados são saqueados por multidões famintas, resultando em ruas repletas de lixo, excrementos e sujeira.
O cenário apocalíptico se torna ainda mais aterrorizante, pois poderia ocorrer em qualquer lugar e com qualquer pessoa, uma vez que Saramago omite o nome da cidade e dos personagens, identificando-os apenas por características, como o médico e a esposa do médico. Observa-se também as diferentes vantagens que alguns personagens possuem, como o contabilista aproveitando sua habilidade em braille, e a esposa do médico focada em garantir a sobrevivência de seu grupo, mesmo diante de situações complexas, como o envolvimento do marido com outra mulher. Ao longo dos capítulos, acompanhamos o desdobrar dos impulsos mais primitivos nas pessoas, desde os instintos de sobrevivência até os comportamentos sexuais.
Por esta obra prima, Saramago foi condecorado com um prêmio Nobel de Literatura.
No Ensaio Sobre a Cegueira, que em 2008 virou filme do diretor Fernando Meirelles, a pergunta é: de que adianta ter visão com os olhos, se nós não nos importamos com o sofrimento do outro? Até quando vamos banalizar a violência, miséria e exclusão?
Ensaio sobre a cegueira é uma experiência única, é o tipo de livro que não termina com o fim da leitura. Difícil de digerir porque é muito cru, angustiante e intenso. Além disso, Saramago subverte as regras gramaticais, o que torna a leitura mais pausada, imagino que esse recurso tenha sido usado justamente para que o leitor se concentre em cada linha e sinta o sofrimento dos personagens.
Minha cena favorita, é quando a mulher do médico percebe que está perdida cheia de sacolas de comida nas mãos, ajoelha no chão e chora abraçada com o cachorro. Esse choro me pareceu uma mistura de desespero com alívio e redenção.
“Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”