Ari Phanie 16/04/2020"É dessa massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade."Eu assisti o filme do Fernando Meirelles há muitos anos atrás e não me lembrava quase nada dos pormenores da história de o Ensaio sobre a cegueira. Lembrava que se tratava de uma trama envolvendo uma epidemia caótica e também lembrava sobre o final. Como eu estava seguindo uma lista de leitura feita previamente, Ensaio sobre a Cegueira estava na sequência e eu achei que mesmo no período atual, a leitura não seria tão difícil. Ah, ledo engano. Não demorou muito e eu já 'tava pedindo arrego.
O início da trama é bem instigador. As pessoas começam a ficar cegas em uma onda de disseminação rápida que ninguém consegue explicar como surgiu e de onde veio. E a única forma que o governo encontra para lidar com essa epidemia é a segregação dessas pessoas "contaminadas" que são colocadas em um manicômio e sua única comunicação com esse governo é através de um megafone que dar informações sobre como elas devem agir ali e o que não devem fazer, correndo o risco de serem mortas caso desobedeçam alguma regra. O mal-estar começa aí, com esse afastamento da sociedade e isolamento obrigatório que lembra a nossa atual realidade, mas que tem também faz um eco do período nazista e seus campos de concentração.
Nesse lugar que as pessoas são jogadas sem nenhum auxílio e precisam ser seus próprios guias, as coisas começam a ficar caóticas muito rapidamente. A tensão da trama, as descrições escatológicas e degradantes, e a eventual barbárie a que se chega podem fazer a experiência de ler esse livro bastante claustrofóbica como se você realmente estivesse trancado ali experimentando as mesmas sensações e tormentos.
Esse foi um dos livros mais difíceis que já li na minha vida até aqui; pelo menos, o foi do começo até a metade. E o principal motivo é exatamente esse caos que não casa nada bem com o momento que a gente 'tá vivendo. Mas a estrutura do livro também não é das mais fáceis. Além da densidade da narrativa, a escrita do Saramago é diferente da habitual a que todos os leitores estão acostumados. As falas dos personagens não vem com os travessões ou aspas como de costume, e nunca há pontos de interrogação, então eu tive que reler algumas frases de diálogos para entender que eram perguntas. Isso fez a leitura mais lenta. Mas não é um ponto negativo, é apenas mais trabalhoso.
Felizmente, a partir da queda do manicômio, eu senti que ficou muito mais "fácil" a leitura para mim, apesar de toda a destruição da humanidade que é relatada. O Saramago é muito filosófico quanto a esse momento de devastação e eu amei todos os questionamentos e elaborações. Há muita simbologia na história também e você pode fazer diferentes interpretações sobre o que é a "cegueira branca". Eu particularmente vi isso apenas como a concretização de algo que já estava ali; as pessoas já eram cegas perante tudo à sua volta, e a perda da visão só se fez física quando chegado o limite de tanta indiferença e obscuridade.
O Saramago não deu nomes aos seus personagens, apenas atributos e títulos, e sua protagonista "a mulher do médico" é onde reside toda a angústia, tensão e horror da narrativa porque ela é a única que ver entre os personagens, e é também nossos olhos. E é a partir de seus pensamentos e falas que nós embarcamos em reflexões maravilhosas. Aquela história de "em terra de cegos quem tem olho é rei" que você acha que faz muito sentido, é através da "mulher do médico" colocado sob uma perspectiva bem real e trágica.
Não tenho muito mais a dizer a não ser que esse foi um livro que faz jus à fama, que deve ser lido porque é, de fato, uma obra incrível, mas que provavelmente não deve ser recomendado em momentos muito conturbados como o atual, e sem dúvida, nem todos devem ler porque algumas cenas de violência sexual são um gatilho. De qualquer forma, a minha primeira experiência com o Saramago foi bem marcante. Que venham mais livros dele, só não nesse naipe porque não aguento tanta sofrência.