Thales 20/04/2021
Boa noite. Você já ouviu a palavra de José Saramago?
Eu tava tentando concatenar algumas palavras bonitas pra fazer a resenha do "Ensaio", mas 1) eu sou absolutamente incapaz de escrever algo a altura desse livro 2) gente muito mais entendida que eu já debateu amplamente não só esse livro como a obra de Saramago como um todo, então eu no máximo choveria no molhado. Por isso nessa resenha aqui vou tentar só elencar algumas coisas que me chamaram a atenção e podem ajudar na leitura de alguém que, como eu, é só um leitor comum.
? A escalada do "mal". Nós que estamos vivendo a pandemia percebemos claramente como uma doença pode tomar a vida de assalto se não combatida direito e como o descaso atrapalha, e muito. Males com proporções de destruição em massa devem ser cortados, o quanto antes, pela raiz - e mesmo assim a coisa ainda pode sair do controle. Para Saramago foi a cegueira branca, para nós hoje é a covid, mas podemos estender a analogia para todo tipo de arma de destruição, do nazismo à bomba atômica.
? O descaso para com a legalidade ao primeiro sinal de exceção. A vida na quarentena imposta ao cegos rapidamente se torna um inferno, e isso é catalisado pela forma como são tratados pelos militares. Como se a vida ali já não fosse complicada o suficiente o exército ainda nega auxílio médico, funerário, atrasa a entrega de comida e outros suprimentos e etc.. É só o indivíduo ser posto dentro do campo de "exceção" que ele perde seu status de cidadão, e isso é dado, não se faz questão de esconder. E fácil entender o manicômio como metáfora para um sem número de situações do mundo real.
? A desumanização, e esse ponto dialoga com o anterior. Uma das tiradas mais brilhantes de Saramago no "Ensaio" é não dar nomes próprios aos personagens. Eles são "o médico", "a mulher do médico", "o primeiro cego", "o rapazito estrábico". Quem já leu ou viu algo sobre campos de concentração sabe que ali os prisioneiros eram reconhecidos pelos seus números, e não pelo nome. Essa atitude servia não só para controle como para desumanizar o indivíduo. O que não tem nome não "é", quando se nomeia algo dota-se esse algo de existência; quando você "desnomeia" você tá fazendo o caminho contrário. Tirar o direito ao nome é "coisificar" o ser humano, e é isso que Saramago faz. Em vários momentos, particularmente nas situações mais confusas, o portuga descrevia os cegos quase como zumbis, e era fácil imaginá-los assim - o fato de ninguém ter nome só deixava o trabalho mais fácil. Mais fácil também de aceitar a forma como eram tratados pelo exército e como lidavam entre si dentro do manicômio. A minha impressão é que Saramago não queria que nós nos apegássemos aos personagens isoladamente, mas os visse como recortes dentro de um todo, como exemplos dentro de uma análise que ele queria suscitar.
? A análise da natureza humana. Freud já dizia que o ser humano é dotado de impulsos e sentimentos impraticáveis e é a todo momento tolhido pela sociedade. O indivíduo portanto enterra essas vontades fermentando o "mal-estar", um sentimento ruim para com o todo. Num local onde as regras não se aplicam, como na quarentena do livro, não há necessidade de recalcamento ou qualquer controle dessas vontades mais primitivas. Pimba, é a receita do colapso. O manicômio é uma experiência em microcosmo do que é uma sociedade não só sem leis, e falo de direito, aparato jurídico, mas sem moral pública, sem convenções, sem direitos e deveres bem delimitados. É o local onde se busca prioritariamente a sobrevivência individual a qualquer custo, mas também onde não há freios para o exercício dos desejos mais primitivos e despudorados. É o retorno ao momento pré-civilização, quase um estado de natureza. E Saramago não dá nenhum voto de confiança ao Homem, é só perceber qual caminho a história toma quando o manicômio lota. Tem um trecho fantástico que resume muito bem o que tô tentando dizer: "É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade."
? A verve por formar "tribos". É impressionante como em nenhum momento da narrativa os cegos conseguem se organizar na totalidade. Não importa em que altura da história a gente tá, os grupos sempre estão reduzidos a uma meia dúzia de pessoas, se muito, que batem cabeça. Sem um poder central e um aparato jurídico-repressivo o Homem é incapaz de sentar e resolver suas pendengas pra regular a vida e o bem comum. Na verdade o "bem comum" é meio que uma abstração. Nesse ponto eu não sei se Saramago, um comunista, tava fazendo uma analogia ampla dos sistemas políticos ou só expondo uma ideia particular - até porque ele não confiava muito nesse caráter "sociológico" da literatura - mas essa crítica tá lá e é bem sensível.
? A cegueira e a desconexão com o mundo. O ser humano tem, mais destacadamente, cinco sentidos. Eles são o elo do "eu" com o mundo exterior, é a partir desses sentidos que nos conectamos com a realidade ao nosso redor. E o ponto mais claro de conexão é, sem dúvida, a visão. Eu tenho certeza absoluta que você prefere perder o paladar ou a audição, quiçá os dois juntos, à visão. Quando Saramago retira de seus personagens esse ponto tão particular de conexão com o mundo tudo isso que eu disse acima se torna possível: desumaniza-se o indivíduo, perde-se o sentimento de "todo", impulsos egoístas e violentos são aflorados. Retirar algo tão fundamental do Homem é perverter justamente o sentido de "ser Homem", de ser humano; o resultado são só os escombros do que entendemos como humanidade e civilização. E não é nada bonito.
Enfim, esses são só alguns pontos de destaque. "Ensaio sobre a cegueira" é daqueles livros "acadêmicos", que suscitam teses, debates e estudos de uma forma geral. A internet é farta em nos oferecer todo tipo de reflexão, em diferentes áreas, dessa obra. Sorte a nossa.
Leiam Saramago, gente!