Laura S. 14/04/2021
Falei demais, é um livro complexo, mas vale a pena
Ensaio sobre a cegueira, acredito que consagrado o melhor livro de Saramago, ou ao menos o mais popular, foi o segundo de sua obra com o qual tive contato.
Sobre a leitura, a escrita no português europeu pode dificultar um pouco a quem não é acostumado, há muitas palavras, trejeitos e ditados diferentes do que vemos no Brasil. Além disso, Saramago pouco se utiliza de pontos e não indica sempre com clareza o emissor das falas, então, para o leitor, isso pode também ser outro ponto de dificuldade. Mas acostuma.
Quanto à obra, ela é cativante, te prende do início ao fim. Já no início, apresenta o primeiro cego no momento em que perde a visão e, a partir dele, aparecem gradativamente os outros personagens que, um a um, também a vão perdendo. Os personagens são assim, não possuem nome, são "o primeiro cego", "a rapariga dos óculos escuros", "o médico", "a mulher do médico" e por aí em diante. Isso se deve, imagino, a necessidade de despersonalizar as personagens, mesmo que se possa identificá-las. Tirando-lhes os nomes, tirando-lhes a visão, no livro, cada pessoa nada mais é do que apenas isso: mais uma.
Em se tratando do enredo principal, Saramago se aproveita da descrição de uma epidemia de cegueira para tratar sobre questões mais intimas ao ser humano. Em um primeiro momento, todos os cegos são isolados em um local insalubre, vigiado pelo exército, e obrigados a se organizarem sozinhos, pois não há ajuda externa. Isso os leva a condições sobre-humanas, com cheiros e texturas muito bem descritas, o manicômio vira um local fétido, coberto por excrementos e fluidos corporais de toda a sorte. Os que ali vivem se distanciam mais e mais dos comportamentos humanos. O lugar vira um zoológico sem lei (ou visão). Já do meio para o final do livro, é retratada a cidade, completamente tomada pela cegueira, incapaz de se manter com eletricidade, água encanada, produção de alimentos e itens básicos para a sobrevivência e, novamente, a cidade é apenas o antigo manicômio em larga escala.
Considerações finais: "Ensaio sobre a cegueira" é uma obra angustiante, com cenas fortes, descrições muito bem feitas e, em geral, é um livro sujo (literalmente, apesar dos esforços de quem ainda se mantém lúcido, quase não há limpeza). É um ótimo livro pra se ler tanto entendendo-o ao pé da letra, quanto observando as metáforas nele não muito escondidas. A cegueira do livro não é apenas o deixar de ver, mas o deixar de enxergar, notar, sentir: "Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, cegos que, vendo, não veem."
Por fim, creio que tê-lo lido estando vivenciando uma pandemia (bem literal, real e forte, vamos combinar) me fez ter um olhar diferente sobre a obra. Recomendo fortemente a leitura, mas ressalvo que é melhor não ter um estômago demasiado sensível.