Coisas de Mineira 01/07/2020
Hoje eu vim trazer a resenha de “Menina Feita de Estrelas”, da Plataforma 21. Antes de qualquer coisa quero dizer que esse livro fala sobre algo bem forte e que deve ser discutido pela sociedade. Mas, caso você não se sinta bem lendo, peço que pare por aqui.
“Menina Feita de Estrelas” fala sobre o estupro. Algo forte, não é? Uma violência que várias pessoas sofrem e infelizmente, bateu um recorde no ano de 2018, com 66 mil vítimas no Brasil, segundo estudo publicado em 2019. Pensa nesse número e em quantas vítimas não tiveram coragem de denunciar? Seja por vergonha, por medo e receio de serem julgadas, de ninguém acreditar no que foi dito, entre diversas outras razões.
Esse livro é uma tentativa de dar voz às vítimas, no caso da história, mulheres. Que sofrem com a culpa e a vergonha do que aconteceu e tentam juntar seus pedaços. Antes de começar a resenha, eu só preciso dizer: a culpa não é de nenhuma delas, a culpa não é da sua roupa, dos seus modos e nada disso. A culpa não é sua!
Mara e Owen nasceram em junho, quando a constelação de Gêmeos despontava no céu do hemisfério Norte. Muito unidos, os dois subiam no telhado para observar as estrelas e contarem histórias. Porém, um dia Owen é chamado a diretoria do colégio, isso porque a namorada do garoto, Hannah, o acusou de estupro.
Mara, como amiga de Hannah e fundadora do Empodera – um coletivo feminista na escola -, sabe que tem que apoiá-la. Mas o que fazer quando o agressor é o seu irmão gêmeo? Além de estar dividida, entre a família e o próprio senso de certo e errado, Mara tem que lidar com Charlie, sua melhor amiga e ex-namorada. Para completar, um trauma do passado volta a atormentá-la.
“As melhores mentiras ficam disfarçadas sob verdades incontestáveis”
Essa é a sinopse de “Menina feita de estrelas”, escrito por Ashley Blake e lançado este ano pela Plataforma 21. O livro não é uma leitura fácil. Não falo isso porque a leitura é demorada e sim, porque a autora trata sobre tantos temas difíceis e complicados, fala sobre tantos sentimentos que ele ficou com uma carga emocional muito pesada. Ao menos para mim.
Quando finalizei a leitura, tive que respirar fundo e segurar as lágrimas um pouco. Porque é difícil, até mesmo ao escrever sobre ele sinto as lágrimas começarem a acumular nos olhos. Preciso dizer que eu comecei o livro odiando o Owen. Na primeira linha eu já odiava o garoto e nem tinha lido nada dele ainda, isso tudo por causa da sinopse.
O livro é todo narrado por Mara, muitos podem estranhar e pensar que talvez seria mais impactante se Hannah narrasse. Mas foi tão importante ver a visão de Mara, de tudo o que acontecia. Fora as coisas que estavam acontecendo com seu irmão, ela ainda tinha as próprias cicatrizes para cuidar, os próprios problemas para resolver.
“Meu coração quase para de bater ao ouvir seu tom de desprezo, ao perceber a facilidade com que posso me tornar outra pessoa, um certo tipo de menina para o meu irmão, só por causa da roupa que estou usando.”
A relação entre irmãos, de Mara e Owen, é a coisa mais linda. O fato de subirem no telhado e contarem histórias, é o tipo de relação que eu gostaria de ter com as minhas irmãs. Mara também é uma menina que eu admirei desde a primeira página e essa admiração só foi crescendo.
Ela criou o coletivo feminista, querendo contrariar o patriarcado que existia na escola. Com o apoio da mãe, que também apoiava as iniciativas feministas da filha. E todo momento, enquanto lia sobre a família eu pensava: e quando o que foi prometido na sinopse acontecer, como essa família vai lidar?
E é algo que eu vim pensando em toda a história. Mas vou focar em Mara. Achei a menina bem corajosa e verdadeira. Sabe quando aquele personagem é humano? Com erros e acertos? Essa é Mara, e isso é algo que eu sempre admiro, quando os autores conseguem fazer com que nos identifiquemos com seus personagens.
Hannah é outra personagem bem humana e corajosa. Apesar de tudo o que está acontecendo com ela, tenta manter a cabeça erguida. Mesmo ferida, está lá com Mara e conversa com a amiga, quando um trauma do passado retorna para a vida dela. Apesar de Mara, ser irmã de seu agressor, ela entende o que a amiga está sentindo e não abre mão da amizade.
“(…) – Tipo, as pessoas surtam com questões de gênero.
– Porque certas pessoas são escrotas. Os seus pais não são. Isso tudo… – encostei na testa dela e fui baixando a mão até o seu braço – …também faz parte de quem você é, e os seus pais te amam.”
Apesar do livro falar sobre violência sexual, há alguns outros temas que são retratados também. Por exemplo, a comunidade LGBTQIA+. Mara é bissexual e começou a namorar a melhor amiga. Mas um dia, resolveu terminar, afinal, ela não queria perder a amizade de Charlie. Charlie nasceu menina, mas é não-binária, ou seja, não se identifica como menina e muito menos como menino. Para os fãs de Harry Potter, Charlie é da Grifinória e tem algumas menções à série de livros.
Alex, melhor amigo de Owen, vem trazendo um pouco sobre o tema bullying e lealdade. Afinal, como ficar contra o melhor amigo, aquele que considera família e que o salvou tantas vezes quando sofria bullying mais novo. É nele, que Mara acaba se apoiando durante os momentos de dúvida, afinal, Alex vê Owen como um irmão e o garoto está sofrendo com os mesmos dilemas que ela.
O Empodera é algo que chamou muito a minha atenção. Não apenas porque Mara queria bater na cara do patriarcado, mas porque ter um espaço onde as mulheres podem discutir assuntos importantes é de extrema relevância. É importante também, que as mulheres se unam, lutem pelos seus direitos e se ajudem.
“- Talvez, se eu tivesse dito “não” mais alto – continua a Hannah. – Ou… sei lá, talvez se a gente não tivesse transado antes ou…”
Sororidade, também é um tema tratado na história. Temos algumas meninas que estão do lado de Hannah, afinal, existe o Empodera. Mas ao que pude perceber, muitas julgam a garota e ficam do lado de Owen. Na verdade, várias pessoas na escola começam a julgar Hannah, um dos argumentos utilizados era “os dois namoravam e tinham uma vida sexual ativa”.
Aí entra uma outra coisa que quero dizer, não é NÃO! Independentemente se você namora com alguém e se já teve relações com essa pessoa. Caso você não queira, mesmo que algo já tenha começado, a pessoa tem que respeitar e parar. Caso isso não aconteça, ela te estuprou sim, não é apenas uma “briguinha de namorados” ou um “surtinho” da pessoa que queria que parasse.
Ao final da história, existe uma nota da autora que acho importante todos lerem. Uma coisa que ela fala é que esse, não era o livro que ela queria escrever, mas sim o livro que tinha que escrever. E que ela não esperava que esse fosse o livro que queríamos ler, mas que fosse a história que tínhamos que ler. Obrigada Ashley, essa é a história que eu tinha que ler. Hannah e Mara também me mostraram que existe esperança, apesar de tudo!
“Tem esse peso, de ter sido responsável, de… meu Deus, sei lá. De simplesmente existir. Como se, de alguma maneira, se eu tivesse simplesmente parado de respirar em um dado momento, teria sido melhor para todo mundo.”
A capa de “Menina Feita de Estrelas” é muito bonita e representa muito a história, afinal temos uma garota em um telhado, com estrelas brilhando atrás dela. Apesar disso, a capa original, que está no site da autora, é perfeita. Sem defeito nenhum.
Ashley Herring Blake é leitora, escritora e mãe de dois garotinhos. Ela possui cinco livros e quero dizer para a Plataforma 21 que eu quero ler mais coisas da autora, então podem continuar trazendo livros dela para o Brasil. Ashley também trabalha como agente literária, por isso, no site dela tem uma parte dizendo o que ela está querendo receber e não, além de ter um link para quem quiser enviar o manuscrito. “Menina feita de estrelas” foi finalista do Lambda Literary Award. Uma premiação que foi instituída em 1998 e premia obras com a temática LGBTQIA+.
Ao final do livro, eu tinha mais quotes do que espaço na resenha, então resolvi deixar alguns aqui no final:
“- Você sabe que tenho muito orgulho de você. Só uma pessoa muito corajosa é capaz de desafiar a misoginia institucionalizada do sistema patriarcal.”
“Ela não procura os gêmeos. Em vez disso, busca por Andrômeda, uma menina feita de estrelas, cuja mãe não parava de falar da beleza da filha, e por isso a filha foi punida. Poseidon mandou prendê-la nas rochas à beira do mar, para ser devorada por um monstro. E agora ela mora no céu, uma lembrança constante do tempo em que ficou acorrentada e quase foi sacrificada por causa das atitudes de outra pessoa, da obsessão de outra pessoa, do egoísmo de outra pessoa.”
“Pisco, tentando encaixar essa mulher que está na minha frente com a mulher que, ontem mesmo, ficou com um brilho nos olhos só de pensar que o Empodera sambaria na cara do patriarcado.”
“É uma coisa tão pequena, a saia. Para outras meninas, poderia ser maquiagem ou um esporte ou transar ou não transar ou escrever ou músicas ou arrasar nas notas ou ter o cabelo tão bagunçado quanto os raios do Sol. Acho que toda menina tem uma ou duas coisas, detalhes minúsculos da sua vida que querem dizer “Eu sou assim. Cansei de me esconder. Cansei de sentir vergonha.’”
Por: Ana Elisa Monteiro
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