C. 11/04/2009
Da teoria à prática: um soneto camoniano
Tem o leitor aqui o esboço duma leitura pessoal do soneto Pede-me o desejo, Dama, que vos veja, de Luís de Camões, à luz das Linhas de Leitura propostas por Maria Vitalina Leal de Matos em A Lírica de Luís de Camões.
Para tanto, parto da observação da engrenagem silogística do poema, estrofe a estrofe, no intuito de demonstrar como, na oposição entre a teoria e a prática, a ação predomina em detrimento da idealização, apesar do domínio sobre a teoria se fazer presente na poética camoniana.
Atente só:
Pede-me o desejo, Dama, que vos veja,
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.
Nesta primeira estrofe é estabelecida a proposta do poema: o “eu-lírico” afirma que o desejo pede que ele a veja, mas que (o desejo) está enganado porque o amor é tão delicado a ponto de quem ama não saber o que, de fato, deseja.
Não há cousa a qual natural seja
Que não queira perpétuo seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Porque não falte nunca o que sobeja.
A segunda quadra vem explicar, por meio dum silogismo, qual é o caráter do desejo: parte da proposição de que nada natural não quer perpétuo estado, ou, mais claramente, tudo o que é natural pretende-se perene, portanto o desejo não quer o desejado para que se mantenha sempre desejando. Daí deduzimos que o desejo é natural e que o objeto desejado deve ser necessário e inalcançável para que o primeiro exista e mantenha-se eterno.
Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,
assi o pensamento (pola parte
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
O primeiro terceto, iniciado pela adversativa, vem indicar que, embora o eu-lírico saiba que o desejo, como cousa natural, pretende-se eterno, nele isto não se aplica. É introduzido um cotejo que será encerrado no último terceto do poema: assim como a grave pedra - a ciência, o pensamento, a filosofia, Copérnico, Galileu, etc. et al - deseja o centro da natureza, o pensamento, ou desejo dele, pediu que ele fosse vê-la porque ele é uma criatura terrestre, humana.
A parte “terrestre [e] humana” à qual a personagem-sujeito se refere está ligada diretamente à prática, embora tenha demonstrado anteriormente que tem domínio sobre os princípios teóricos, contemporâneos ao poema, que pregam a procura pela manutenção eterna do que é natural.
É deste modo que a análise proposta no poema procura distinguir teoria e prática, diferenciando pensamento e ação.
Sob o ponto de vista da teoria, que crê na cousa natural querer perpétuo seu estado, a ação, que leva o “eu-lírico” à concretização do desejo, vendo a Dama, é caracterizada como “baixeza”.
É interessante observar que, embora, sob a perspectiva do plano dos princípios, o ato de vê-la seja apontado como baixeza típica do humano, o “eu-lírico” faça questão de assumir sua “falha” e demonstrar, ao final do poema, como aquela teoria não serve de nada ao ser terrestre e humano.
Desta maneira, fica evidenciado no poema em questão que, apesar de coexistirem, como afirma Maria Vitalina Leal de Matos, o carnal e o espiritual, a estância prática, humana e carnal é privilegiada por Camões, em detrimento da teórica, sobre-humana e idealizada.
Referências:
MATOS, Maria Vitalina Leal de, A lírica de Luís de Camões, 4ª edição, Lisboa: Editorial comunicação, 1994
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e, Camões: Labirintos e Fascínios, 2ª edição, Lisboa: Cotovia, 1999