Que fim levaram todas as flores

Que fim levaram todas as flores Otto Leopoldo Winck




Resenhas - Que fim levaram todas as flores


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Krishnamurti 15/11/2019

Sonhando acordado
HOJE É 15 DE NOVEMBRO. DATA EM QUE SE COMEMORA A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA. Bonito hem? Isto nos faz lembrar do Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis. Em seu romance “Esaú e Jacó”, Machado cria uma situação que nos deixa entrever por baixo da ironia e do sarcasmo, o que ele pensava (?) sobre a tal proclamação. O romance se desenrola sob o ponto de vista de um diplomata aposentado, o Conselheiro Aires. É ele quem opina sobre os fatos, quem esclarece as situações e as atitudes dos personagens. A história se passa à época da mudança do regime monárquico para o republicano. A proclamação da República, propriamente dita, é mencionada no episódio da tabuleta, em diálogo entre Conselheiro Aires e Custódio, dono de uma confeitaria.

Tudo começa dias antes, quando “toda gente voltou da ilha com o baile na cabeça”, referindo-se ao célebre Baile da Ilha Fiscal, ocorrido em 9 de novembro de 1889. Custódio, depois de muita relutância, mandara pintar a tabuleta que levava o nome de sua loja na rua do Catete: Confeitaria do Império. O pintor avisa então que “a tábua está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta (…) está rachada e comida de bichos”. A alusão à monarquia é óbvia: um regime velho, decadente, comprometido e sem sustentação, que não suporta mais nem uma reforma, tem que mudar tudo. Encomenda-se uma nova tabuleta, mas eis que ocorre o golpe da República. Custódio manda um bilhete ao pintor com o seguinte recado: “Pare no d.” Não sabia se era melhor concluir a pintura com a palavra Império ou República. A indecisão de Custódio quanto ao nome é sintomática de um país que muda para manter tudo como está. Machado de Assis reduz a proclamação da República a uma simples troca de tabuletas. República e Império se equivalem como rótulos de fachada.

Mas a proclamação foi benéfica, como não? Já pensaram se tivéssemos ainda hoje um Pedro oitavo, a querer enfiar um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal? Ou a criar mais um partido político no Brasil porque os trinta e tantos que já temos são poucos? Ou o que é pior, uma renca de principezinhos, um a ser nomeado como embaixador do Brasil na ilha de Java, ou o outro a twittar diuturnamente na Net, ou a pregar a volta de regimes de exceção etc.? Não; foi um avanço incalculável, foi bom sim...

“Umas coisas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder de si...”. Escreveu Machado também em outra oportunidade, de forma que a data de hoje, 15 de novembro de 2019, a proclamação da República de 1889, e a leitura de “Que fim levaram todas as flores”, romance do senhor Otto Leopoldo Winck que por coincidência (outro enrosco), também começa com uma citação de trecho de Machado, andaram se entrelaçando, desataram-se e confundiram-se na minha consciência. Não percamos tempo, que ele anda à revelia de nossa vontade. Andemos com ele.

Estamos em plena alucinação dos dias hodiernos (vou imitar o narrador e escrever aqui o significado de hodierno: que existe ou ocorre atualmente; atual, dos dias de hoje). Um tal de Ruy Dalla Costa é um quase velho (passou dos sessenta já era), vive em um bolorento apartamento em companhia de um gato chamado Lennon. Por desfastio da vida insossa que leva, resolve se matricular em uma “oficina de escrita criativa” em Curitiba onde o professor lhe propõe que comece a escrever um romance. Pensando em um dos protagonistas da trama, Adrian Steiner, Ruy começa a escrever o seu romance de desencanto. E é então que o leitor toma um piparote ficcional (gesto de distender com força um dedo. Frequentemente o dedo médio antes dobrado e apoiado sobre o polegar, para dar uma pequena pancada em alguém ou alguma coisa), e vamos todos parar em uma cidadezinha do interior do Paraná já na famosíssima década de sessenta do século XX, a acompanhar a vida de Ruy, então adolescente. Aí a ambiência temporal predominante no livro.

Muito bem. Os destinos de 3 adolescentes se entrelaçam naquela bucólica cidade. Ruy, Adrian e Elisa cursam o primeiro ano do colegial no Colégio Duque de Caxias. Adrian é novato na cidade e aluno transferido de outra escola. Esse detalhe, aliado à curiosidade natural e algumas afinidades, acabou por juntar aquelas três vidas em um momento em que a humanidade passava por profundas transformações sociais. Para se ter uma ideia da ‘bomba’ que tais transformações representaram naquelas cabecinhas, basta saber que aquela geração era literalmente doutrinada na família e na escola por conceitos deturpados da história, tais como as leituras que certos professores faziam para a turma, a exemplo de: “O negro vive num certo isolamento, embora não existam entre nós preconceitos de cor. Dedica-se a profissões braçais ou aos serviços domésticos.” O negro vive numa espécie de isolamento? Não existem entre nós preconceitos de cor? Dedica-se (puta que pariu!), dedica-se a profissões braçais?

Fizemos questão de mencionar esse detalhe específico (voltando a lembrar daquela historinha da República e etc.), para enfatizar uma grande qualidade desse romance que é tocar no imaginário, e nas consciências daqueles jovens que viveram os turbulentos anos sessenta no Brasil. O texto já se disse, é narrado numa chave retrospectiva. Um homem de meia idade relembra o passado. Como se vivia, como se pensava, enfim, qual o sistema de valores que se tinha no Brasil até o turbilhão dos anos 60.

Situemos melhor aquele momento. A década de 1960 inicialmente foi marcada por um sabor de inocência e até de lirismo nas manifestações socioculturais, e no âmbito da política é evidente um idealismo e um entusiasmo Uma segunda fase parece se estabelecer ali por volta de 1966 a 1968 em um tom mais ácido, que revelou as experiências com drogas, a perda da inocência, a revolução sexual e os protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Os movimentos dos anos de 1960, seja na sua expressão mais propriamente política, seja na contracultural, (aqui entendida como o conjunto de movimentos de rebelião da juventude com um forte espírito de contestação, de insatisfação, de experiência, de busca de uma outra realidade, de um outro modo de vida), ou mesmo nos modos em que combinaram essas expressividades, tiveram como traço característico a transgressão de padrões dos valores estabelecidos dentro de uma acelerada mutação cultural (de amplitude internacional, é certo, mas com características particulares nos seus diversos contextos).

O romance se estrutura em três grandes painéis, o primeiro descreve o encontro dos três personagens. Ruy, Adrian e Elisa, suas descobertas e seus deslumbramentos ante as grandes questões e comportamentos que invadiam a cidadezinha no interior do Paraná. Seus tímidos e rechaçados movimentos políticos em manifestações estudantis (ressalte-se; mera imitação do que ouviam falar que acontecia nos grandes centros urbanos), e aquele irrefreável desejo de liberdade amalucada que quem já foi adolescente sabe muito bem qual é. O tempo passa, e toca a cursar universidade na capital. No segundo capítulo encontramos os jovens na universidade, ou em vias de, e as questões relativas às escolhas pessoais de cada um afloram, seus envolvimentos, triângulos amorosos, trepação a torto e a direito, e muita bebedeira e maconha na jogada. Os destinos se bifurcam. Adrian entra de cabeça na atuação política de esquerda subversiva, Elisa o acompanha até certo ponto, e Ruy titubeia e não sabe afinal para que lado vai. Corre o ano de 1968. Aquele do AI-5 e do endurecimento do regime militar. As consequências já se sabe, repressão, revolta, e prisões em meio a palavras de ordem, barricadas, correrias, carros virados em vias públicas e gás lacrimogêneo.

As mentes daqueles jovens tiveram de lidar com as transformações da imagem da mulher, com o feminismo; a liberação sexual; as modificações na estrutura da família; a entronização do modo jovem de ser como estilo de vida; a flexibilização das hierarquias e da autoridade; a construção de novas relações entre o adulto e o jovem; a criação de um novo imaginário de fraternidade; a introdução do “novo” na política; a emergência das questões ecológicas como se fossem também políticas, e a famigerada ditadura militar. Tudo no embalo ideológico da teen age (idade jovem) combinação psíquica perfeita para a época: vivendo no agora, buscando prazer, famintos por produtos da nova sociedade global onde a inclusão social terminaria concedida pelo poder de compra. O futuro seria teen age. Era para pirar cabecinhas, não?

Parece-nos, dentro da visada retrospectiva que a obra leva a efeito, que a dita Contracultura acabou por impulsionar bastante a fragmentação dos tempos atuais, pois foi a partir dela que inúmeros movimentos sociais e políticos formaram-se fora das estruturas sociais e políticas tradicionais (movimentos ecológicos, feministas, homossexuais e etc. – e bota etc. nisto).

Os ideais de “Mudar a vida”, “ou mudar o mundo” que esteve presente como sonho em vários locais e momentos, tanto nas práticas cotidianas como nos ideais sociais, políticos, culturais, éticos e alternativos, além de condensar uma imensa diversidade de significados não foram acompanhados de uma tomada de consciência do que acontecia no mundo. E no caso brasileiro, como todos sabemos, embora ainda hoje alguns tentem esconder a luz do sol com a peneira, tal tomada de consciência era ainda mais difícil porque vivíamos em uma ditadura que, se por um lado impedia o ventilar de ideias com uma censura feroz, por outro baixava o cacete e torturava a torto e a direto, como o Adrian sentiu na própria pele.

A juventude (ou quem quer que desejasse mudanças efetivas), acabou ao longo do tempo por perder força ante a variedade imensa de possibilidade de consumo que engolfam qualquer desejo que nela não estivesse pautada. Isto de um lado, de outro, a institucionalização da sociedade do espetáculo, com o uso massivo de imagens e seu caráter espetacular de “produto”, acabou por ocultar as reais relações de exploração da sociedade capitalista. E hoje estamos entre dois impasses, o completo fracasso das ideologias (tão caras à geração dos anos 60), e uma enxurrada de cultura-mercadoria.

A grande sacada do livro, entretanto, vem no terceiro capítulo no qual Adrian e Ruy se encontram 40 anos depois, os dois já senhores idosos respeitáveis, para um bate papo amistoso a lembrar e avaliar o rumo que deram a suas vidas e o que o país tomou. Este positivamente o ponto alto. Simplesmente porque aí se conectam maturidade e memória. Observações muito pertinentes sobre o período dos anos 60 e nossa atual realidade são levadas a cabo. Não há como não lembrar de um trecho daquela música cantada por Elis Regina “Como nossos pais”, no ponto em que ouvimos os versos: “Eles venceram / e o sinal está fechado para nós / que somos jovens” Ele quem, nós quem? Se perguntará perplexo hoje o leitor após a leitura desse livro positivamente excepcional.

“Que fim levaram todas as flores” nos faz pensar nessas e em outras questões fundamentais para nossos dias. Onde o sonho de um mundo melhor? De certo que não o encontraremos nessa barafunda de vozes e imagens e sons e confusão generalizada em que a humanidade se afoga atualmente olhando para o próprio umbiguinho. O tempo passou, muito se fez, muito andou-se para frente, inclusive na tal democracia e etc. Mas perdura um ranço muito, muito fedido que se sente no Brasil (e o mundo não foge à regra). Há no fecho do romance um breve texto assinado pelo próprio autor em que ele se pergunta: “Meu Deus, a roda do tempo emperrou? Emperrou ou deu para andar para trás, ao contrário do que pensavam Heráclito, Hegel e Marx?” Daí é que voltamos a lembrar daquela tabuleta do romance de Machado de Assis. A tábua está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta (…) está rachada e comida de bichos”. Não se pode (eternamente), simplesmente “trocar de tabuleta” e manter tudo como sempre foi. Com a palavra um dos personagens do livro, o “maluco beleza” Grillo Flowers: “O caminho da paz é a harmonia universal. Você não muda o mundo exterior se antes não mudar a si mesmo, mora? É como diz o apóstolo Paulo, se o homem velho não morrer, neca de pitibiribas.” Enquanto isso não ocorre, um milímetro sequer - porque esperar grandes despojamentos em um caos desses em que vivemos, é o mesmo que esperar que uma revolução começasse nos anos 60 a partir das massas camponesas no interior do Brasil. Enquanto isso... Tome-lhe tiro, porrada e bombas! Marchas e contramarchas, avanços e recuos, fluxo e refluxo, sobretudo no Brasil que não teve ainda coragem de encarar sua história de frente.

O senhor Otto Leopoldo usou como uma das epígrafes do seu belo romance, a sentença cunhada pelo escritor inglês T.E. Lawrence (1888 -1935), em “Os Sete Pilares da Sabedoria”: “Todos os homens sonham: mas não do mesmo jeito. Aqueles que sonham de noite nos recessos empoeirados de suas mentes acordam no dia seguinte para descobrir que seus sonhos eram vaidades: mas aqueles que sonham de dia são homens perigosos, pois podem atuar em seus sonhos com os olhos abertos para torná-los realidade.” Precisamos ser ‘perigosos’ nesse sentido.

EM TEMPO. Uma coincidência digna de nota. Nesse livro que é também a história da escrita de um romance, o seu autor ficcional Ruy Dalla Costa, coloca a data de conclusão do texto: 15 de novembro de 2017.

Livro: “Que fim levaram todas as flores”, romance de Otto Leopoldo Winck – Kotter Editorial e Editora Patuá, 294 pag. ISBN: 978-65-80103-52-2 Link para compra e pronta entrega https://kotter.com.br/loja/que-fim-levaram-as-flores/
OU DIRETO COM O AUTOR.
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meandros 05/05/2020

Curitiba: tempo e espaço
"Que fim levaram todas as flores" é, essencialmente, uma história sobre três universitários na Curitiba da década de 60, no auge da Ditadura Militar.

Como um bom romance histórico, ele cumpre bem a tarefa de transportar o leitor para a pele dos personagens de uma época e lugar particulares. Mas, indo além, a cidade de Curitiba de cinco décadas atrás não é só um ambiente detalhado que dá atmosfera da história, ela é praticamente um personagem próprio.

A principal divisão do livro é em três partes: a primeira em que os jovens vivem em uma cidade do interior não nomeada, a segunda em que estão na capital para estudar (e fazer a revolução!) e a terceira em que se reencontram em uma Curitiba contemporânea. O centro da narrativa está na segunda parte, não por acaso a maior. Mas a primeira e a terceira são igualmente importantes para evidenciar a transformação nos personagens, incluindo a própria cidade, que se forma com cidadãos de outros locais e se transforma em algo muito maior e diferente da pequena cidade universitária que já foi.

O rigor e detalhamento da geografia urbana lembra outras obras de autores da cidade como Critóvão Tezza e Dalton Trevizan. A precisão histórica também tem seu paralelo com outra obra que usa a mesma temática, a HQ "1968: Ditadura Abaixo", escrito pela Teresa Urban e desenhado pelo Guilherme Caldas. A profundidade que o autor trata o tempo e o espaço é, sem dúvida, o ponto forte do livro.

Neste sentido, o panorama cultural é sempre lembrado, em especial o aspecto musical. O título de inspiração na canção dos Secos & Molhados não está lá por acaso. (Aliás, recomendo o próximo leitor a ir anotando todas as músicas que são direta ou indiretamente citadas e montar e disponibilizar uma playlist. Facilitará muito a vida de quem quiser ler tendo o som dos anos 60 ao fundo!)

Os personagens e a narrativa infelizmente não acompanham tanto a profundidade da Curitiba apresentada. Isto algumas vezes atrapalha o ritmo da leitura. No entanto, o romance está ciente disto e faz uma autocrítica ao seu final. As páginas finais, a propósito, são arrebatadoras e corrigem qualquer problema que tenha ficado para trás.

A política está situada no tempo e no espaço. "Que fim levaram todas as flores" concretiza isto e mostra como os ideais políticos transformam a cidade e são transformados por ela.
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@josielhist 05/01/2020

Pra encontrar o revolucionário que vive em você
O livro é muito bem escrito com uma técnica apurada. Em questões estéticas traz uma espécie de moldura em páginas cinzas que apresenta ao leitor o que vem a seguir, e ao final, alguns esclarecimentos sobre a história. Os eventos históricos como a ocupação da reitoria e outros que são narrados, demonstram que o autor se debruçou sobre as fontes para tornar o seu romance o mais verossímil possível. Os personagens são capazes de fazer um adulto recordar o seu passado cheio de sonhos e energia revolucionária. Que fim levaram todas as flores é uma história que começa no norte do Paraná e vem para Curitiba, esta cidade conservadora, provinciana e com grande posicionamento direitista. Os jovens protagonistas nos dão um tapa na cara ao fazer-nos pensar sobre o que fomos e o que somos. A leitura flui, o ritmo de leitura é muito rápido e um leitor atento percebe que existem várias camadas a serem observados no texto. Recomendo muito essa leitura!
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